sábado, 22 de junho de 2013

Manifestações públicas


Manifestação sem reflexão é alienação

José Lisboa Moreira de Oliveira*

            Há alguns dias o nosso país está sendo palco de numerosas manifestações de pessoas, que tomam as ruas para protestar contra situações consideradas injustas. Tudo parece ter começado em São Paulo numa reação contra o aumento da passagem dos transportes coletivos. Mas aos poucos outros “ingredientes” foram sendo acrescentados ao “cardápio” das reinvindicações: os escandalosos gastos com a Copa do Mundo de futebol, a volta da inflação que atinge de modo todo especial os alimentos, a corrupção política, o descaso com setores fundamentais como a saúde e a educação, e assim por diante.

            A manifestação pública, o protesto, as marchas etc. são expressão de uma democracia participativa e sinal de que estamos acordados e reagindo a situações insuportáveis que causam indignação e perplexidade. Por essa razão essas manifestações são não só legítimas, mas profundamente necessárias para se garantir a efetiva democracia e o exercício da cidadania. Querer impedi-las seria o mesmo que colocar-se contra a prática democrática. O direito à manifestação e à liberdade de opinião não pode ser visto como “surto psicótico” ou “histeria coletiva”. Isso está garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Constituição Federal do Brasil. Portanto, é algo normal e faz parte do jogo democrático.

Porém, isso não significa que a manifestação e o protesto por si próprios sejam suficientes para resolver os problemas de uma nação. Uma manifestação, por mais extensa e expressiva que seja, não revela necessariamente a maturidade democrática de um povo. Dependendo do caso, pode ser sinal de desespero, de crise e até mesmo de violência coletiva. Para que possam revelar-se como sinal de maturidade política os atos públicos precisam ser acompanhados de bastante reflexão e de racionalidade. Do contrário, se esvaziam e não conseguem atingir plenamente seus objetivos. Essa reflexão e essa racionalidade precisam ser cultivadas antes de tudo a nível individual. Mas precisam ser feitas também em vários espaços coletivos de nossa sociedade.

            A reflexão e a racionalidade são necessárias para que se evite o risco gravíssimo de se tentar encontrar “bodes expiatórios”, ou seja, culpados para o que está acontecendo no país. Infelizmente a história e as pesquisas mostram que nesses momentos há uma tendência generalizada das multidões em buscar responsáveis, ou até um responsável pelas situações críticas. E, lamentavelmente, na maioria das vezes, “os bodes expiatórios”, que pagam o preço amargo da fúria das multidões, são pessoas inocentes que nada têm a ver com o que acontece, ou que não são as únicas responsáveis pelos males que afetam um povo ou uma nação.

            O antropólogo francês René Girard tem estudado muito esse tema. No seu livro O bode expiatório (São Paulo: Paulus, 2004) ele analisa alguns aspectos da questão. Girard, antes de tudo chama a nossa atenção para o fato de que esse tipo de manifestação acontece quase sempre em períodos de crise e de enfraquecimento das instituições. A crise e o enfraquecimento das instituições “favorecem a formação de multidões, isto é, de ajuntamentos populares espontâneos, suscetíveis de substituir instituições enfraquecidas ou de exercer pressão decisiva sobre elas” (p. 19). Essa pretensão de querer substituir o papel decisivo das instituições pode levar a uma cegueira desesperada e obstinada que não admite nenhuma outra lógica a não ser a radicalidade exacerbada, terminando por levar a mobilização popular a contradições e a fazer na prática o que tanto repudia. Combate-se a injustiça com a injustiça, a violência com a violência. E isso, como mostram os fatos históricos, não leva a nada.

            Um segundo elemento apontado por Girard é o fato de que nessas mobilizações as pessoas, geralmente, se recusam a avaliar a própria responsabilidade pelo que está acontecendo. Os manifestantes mais do que avaliar a si próprios “têm forçosamente a tendência de reprovar tanto a sociedade em seu conjunto, o que não os compromete com nada, como os outros indivíduos que lhes parecem particularmente nocivos por razões fáceis de desvendar. Os suspeitos são acusados de crimes de um tipo particular” (p. 22).

É importante, por exemplo, que os manifestantes sejam levados a pensar nos pequenos atos cotidianos de corrupção que normalmente praticamos. Seria bom que o estudante que participa da passeata fizesse uma autoanálise de si mesmo, para ver se não costuma, de vez em quando, apresentar um plágio como sendo trabalho de sua autoria. Que o professor manifestante pensasse na sua forma de exercer a docência. Não teria sido alguma vez um ato de corrupção? Que o funcionário público que participa das passeatas pudesse confrontar a sua forma de trabalhar e de atender o cidadão comum. Que os fanáticos torcedores, certamente muitos deles presentes nessas manifestações, pensassem no modo como se comportam nos estádios e no modo como idolatram o futebol. Que os meninos e as meninas de classe média pudessem questionar seus pais sobre o modo como tratam seus funcionários, especialmente aqueles mais simples, aqueles que lavam as latrinas de suas casas chiques. Que o trabalhador comum pudesse analisar o seu modo de se comportar na fila de ônibus, na fila do banco ou na fila do refeitório da empresa onde trabalha. Não estaria ele, algumas vezes e na prática, querendo levar vantagem em tudo? E a lista poderia se multiplicar. Se faltar isso, as manifestações terminam dando em nada. Quando tudo terminar, vamos ver que a vida continua do mesmo jeito, uma vez que a corrupção que levou o político corrupto até o Congresso Nacional está arraigada em cada um e em cada uma de nós. E se não for expurgada a corrupção que mora dentro de cada pessoa, não há como expurgá-la das instituições.

Além da reflexão individual é fundamental que as instituições (famílias, igrejas, escolas, universidades, sindicatos, ONGs etc.) também façam sua reflexão e ajudem a refletir. Não é nenhuma novidade o fato de que a família vem abdicando de sua responsabilidade educativa. As igrejas se transformaram em “supermercados da fé” e na sua grande maioria se limitam a vender “kits de salvação”, recusando-se a pensar e a educar seus fiéis para uma consciência crítica. As escolas, por várias razões, não mais educam. As universidades se transformaram em “supermercados de diplomas” e o sindicatos, quase todos pelegos, se limitam a promover shows, sorteios e bingos no dia do trabalhador. As ONGs, salvo honrosas exceções, se transformaram na forma mais fácil de embolsar o dinheiro público e de garantir boa vida para suas cúpulas.

Esta reflexão coletiva é indispensável, uma vez que a corrupção dos indivíduos é alimentada pela corrupção das instituições. Se, por um lado, os indivíduos corruptos favorecem as instituições corruptas, por outro as instituições corruptas criam estruturas e ambientes que induzem à corrupção individual. E, lamentavelmente, em momentos como esses de mobilizações coletivas a instituição, seja ela qual for, ao invés “de ver no microcosmo individual um reflexo ou uma imitação do nível global, ela procura no indivíduo a origem e a causa de tudo o que a fere. Real ou não, a responsabilidade das vítimas sofre o mesmo engrandecimento fantástico” (GIRARD, p. 30). Não por acaso as mobilizações que estão acontecendo no Brasil tiveram início após uma campanha maciça da grande mídia em favor da redução da maioridade penal.

Sem reflexão e sem racionalidade as manifestações, além do risco de apelar para a violência, acabam em nada e não servem para nada. Podem simplesmente, mesmo que de forma inconsciente, tornarem-se massa de manobra e de manipulação daqueles que não querem que as pessoas pensem e tenham consciência crítica. Além disso, podem penalizar vítimas inocentes e pessoas que não são as únicas responsáveis pelo que está acontecendo. “Os perseguidores acabam sempre por se convencer de que um pequeno número de indivíduos ou até mesmo um só pode tornar-se extremamente nocivo para toda a sociedade, apesar de sua relativa fraqueza [...]. A multidão tende sempre à perseguição, pois as causas naturais daquilo que a perturba, daquilo que a transforma em turba, não pode interessá-la. A multidão, por definição, procura a ação, mas não consegue agir sobre as causas naturais, procura, então, uma causa acessível e que satisfaça seu apetite de violência” (GIRARD, p. 23).

Isso ficou evidente, por exemplo, nas depredação do patrimônio público praticadas por algumas pessoas durante as manifestações. Ficou evidente também na tentativa de alguns de não permitir a presença de partidos políticos nas passeatas, como se fosse possível uma democracia sem partidos e como se todos os partidos fossem iguais. Ficou evidente ainda na manifestação de ira e de agressividade contra alguns políticos que há pouco tempo assumiram o poder executivo. Girard nota com perspicácia que nas manifestações públicas tende-se a punir “o último a chegar” (p. 26-27) como se ele fosse o único responsável por tudo. Com isso esquecem-se os responsáveis que há séculos perpetuam uma situação de injustiça. No caso do Brasil, ao se enfurecer contra os políticos que no momento ocupam funções executivas, a multidão não percebe que somos vítimas de um colonialismo que já dura mais de quinhentos anos. Não se trata de absolver os atuais políticos, mas de nos darmos conta de que há um sistema secular de opressão. E se não quebrarmos essa corrente colonial, não há como resolver o problema.

Portanto, sem reflexão e sem racionalidade as manifestações correm o risco de serem alienadas, uma vez que, passada a euforia do momento, tudo volta a ser como era antes. Precisamos levar as reinvindicações das ruas para o debate na família, nas igrejas, nas escolas, nas universidades, nos mais diversos grupos humanos. Não podemos nos perder na lógica perversa de separar a sociedade brasileira entre bons e maus, uma vez que dentro de cada um e de cada uma de nós mora um anjo e um demônio. O que precisamos é pensar, refletir e falar dessas coisas entre nós para termos condições de identificarmos as verdadeiras causas da corrupção e das injustiças. Se não fizermos isso corremos o risco de criarmos e punirmos inocentes que, tratados como verdadeiros “bodes expiatórios”, pagarão o preço amargo por uma situação da qual não são responsáveis. E, infelizmente, nesses momentos de agitação social a tendência é punir pessoas rotuladas e tidas como anormais pela multidão. Geralmente tais pessoas pertencem a grupos sociais e étnicos estigmatizados ou estereotipados. E “quando um grupo humano tomou o hábito de escolher suas vítimas em certa categoria social, étnica e religiosa, ele tende a lhe atribuir as doenças ou deformações que reforçariam a polarização vitimária, caso elas fossem reais” (GIRARD, p. 27). Que o digam os negros, os indígenas, os homossexuais, os membros das religiões afro-brasileiras e outras categorias de pessoas profundamente discriminadas em nosso país. Inclusive por pessoas que certamente estão participando das manifestações.



* Filósofo, teólogo, escritor, conferencista, gestor do Centro de Reflexão e Estudos sobre Ética e Antropologia da Religião (Crear) da Universidade Católica de Brasília, onde também é professor.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Missão da universidade católica


A identidade e a missão da universidade confessional católica

Prof. Dr. José Lisboa Moreira de Oliveira*

            A universidade é uma instituição surgida na Europa no século XII, por volta do ano 1150, no contexto do Renascimento, por inciativa da Igreja Católica Apostólica Romana. No início chamava-se “Studium generale” (Estudos gerais) e tinha apenas dois cursos: Filosofia e Teologia. Porém, dentro desses cursos, especialmente da Filosofia, estavam incluídas outras ciências como geometria, aritmética, medicina e direito. Porque estes estudos tinham um caráter bastante amplo, a universidade passou a se chamar Universitas magistrorum et scholarium, ou seja, universidade do ensino e do estudo. Com o passar do tempo a designação ficou resumida ao simples termo “universidade”.

Aos poucos os países foram assumindo a responsabilidade da educação e começam a serem criadas universidades públicas. Porém, as universidades católicas nunca deixaram de existir. Atualmente, segundo dados que circulam na internet, existem cerca de 1360 universidades católicas no mundo.

1. Normas para as universidades católicas
Desde o surgimento da universidade até o presente, a Igreja Católica tem procurado emanar normas e orientações para as suas instituições de ensino superior. Durante o Concílio Vaticano II, realizado entre 1962 e 1965, num documento sobre a educação cristã, intitulado Gravissimum educationis (GE), promulgado em 28 de outubro de 1965, os bispos católicos do mundo inteiro propuseram algumas indicações, tendo presente o contexto dos anos 1960, profundamente marcados por várias revoluções, transformações e pela ideologia do progresso. Quando se referiram às escolas católicas os bispos foram incisivos em afirmar que elas deveriam ter três objetivos específicos: contribuir para o desenvolvimento dos “serviços sociais”, oferecer educação aos mais pobres e formar bons professores (GE, 9). Estava fora de cogitação toda e qualquer ideia de uma universidade “fábrica de canudos”, voltada para a formação burguesa de profissionais liberais sem compromisso social.

Quando falaram especificamente das universidades e faculdades católicas, além de ressaltar o significado delas para o diálogo entre fé e razão e para a investigação científica, os bispos católicos pediram que as mesmas contribuíssem para o exercício da cidadania. Deviam preparar pessoas capazes de atuar eticamente na política e na promoção do bem-comum. Por isso, as universidades e faculdades católicas, especialmente nos países mais pobres, deviam facilitar o ingresso no ensino superior dos jovens mais pobres (GE, 10). Essa proposta dos bispos católicos elimina toda e qualquer possibilidade de uma universidade de corte neoliberal, elitista e excludente. Seria uma tremenda contradição.

Depois disso, outros documentos foram publicados. Um deles foi a Constituição Apostólica Ex corde Ecclesiae (Do coração da Igreja), datada de 15 de agosto de 1990 e assinada pelo papa João Paulo II. Tendo presente este documento, pretendo fazer agora algumas considerações sobre a missão da universidade católica. O que vai ser dito logo em seguida é a minha interpretação daquilo que a própria Igreja Católica manifesta nesse documento sobre as suas universidades.

2. Universidade a serviço da verdade
A primeira coisa que o documento Ex corde Ecclesiae (ECE) afirma é que a universidade católica tem a responsabilidade “consagrar-se sem reservas à causa da verdade” (ECE,4). De acordo com o papa, esta “é a sua maneira de servir ao mesmo tempo a dignidade do homem e a causa da Igreja”. Do contexto do parágrafo deduz-se que a verdade aqui significa buscar com inteligência e amor tudo aquilo que pode contribuir para a afirmação da dignidade humana, da liberdade e da justiça. Nesse sentido, pode-se afirmar, sem medo de errar, que se a universidade católica não estiver comprometida com a busca dessa verdade, ela estará traindo a sua própria identidade e missão. Toda decisão, atitude e ação que visem ofuscar a verdade, obscurecer a transparência e camuflar a realidade atentam contra os princípios católicos.

Um segundo princípio constitutivo da identidade e da missão da universidade católica é “o esforço conjunto da inteligência e da fé” para que as pessoas possam “alcançar a medida plena de sua humanidade” (ECE, 5). Isso quer dizer que uma universidade católica não existe para ser um mero “supermercado de diplomas”. Para ser de fato católica, ela precisa ter compromisso com a humanização da humanidade. Uma universidade que se orienta exclusivamente pela política mercadológica e, a partir disso, se programa e se reprograma, sem se preocupar em dar uma contribuição efetiva para a humanização do mundo, já deixou de ser católica. E para contribuir com a humanização ela precisa, antes de tudo, humanizar-se, isto é, desenvolver políticas internas de respeito pelas pessoas que nela trabalham e circulam. Precisa cuidar bem das pessoas, tratá-las com dignidade, valorizando cada ser humano que nela atua e se encontra.

De acordo com o documento papal, um terceiro elemento constitutivo da identidade e da missão de uma universidade católica, decorrente dos anteriores, é o respeito pela pluralidade e pela imensidade dos campos do saber, cuja expressão disso é um fecundo diálogo (ECE, 6). Disso se deduz que toda forma autoritária, dominadora, excludente, burocrática, não participativa e fechada de conduzir uma universidade católica, não manifesta a sua verdadeira identidade. E como isso está relacionado com a busca da verdade, podemos deduzir que a falta de transparência, a formação de “panelinhas” e de guetos dirigentes, a ausência de processos sérios de consulta ao corpo docente e discente se constitui num desrespeito à pluralidade e à diversidade de saberes.

Fere igualmente esse princípio aquele tipo de comportamento do “faz de conta”, através do qual a cúpula dirigente de uma universidade católica finge que consulta, finge que dialoga, finge que leva a sério as sugestões dos docentes, funcionários e alunos, mas na hora das decisões age de forma autoritária e dominadora, desprezando por completo a inteligência das pessoas que “vestem a sua camisa”. É muito comum encontrarmos universidades católicas que, desprezando por completo o potencial intelectual de seus professores e estudantes, se deixam guiar por certos “iluminados”, muitos deles meros burocratas administrativos, sem nenhuma vocação e paixão pela educação e pelos valores éticos e cristãos.

Além dos elementos anteriores, João Paulo II coloca como constitutivo da identidade de uma universidade católica, a necessária e permanente busca do significado das conquistas da ciência e da técnica na perspectiva da totalidade da pessoa humana. A investigação científica e o uso da tecnologia, devem obrigatoriamente favorecer a convivência social, o respeito às culturas e a causa do ser humano (ECE, 7). Isso quer dizer que as atividades de ensino e de pesquisa numa universidade católica têm como ponto de convergência a extensão: contribuir efetivamente para elevar o nível de ação da comunidade local, nacional e internacional em favor da promoção humana, da justiça, da fraternidade e da solidariedade. Uma universidade católica, que não se preocupa em avaliar o grau da sua efetiva colaboração para transformar realidades injustas existentes nos locais onde se encontra, está na contramão de sua razão de ser e de existir. Perdeu completamente o rumo e traiu sua identidade.

3. O cuidado com as implicações éticas
O que acabou de ser dito revela que toda universidade católica precisa cuidar das implicações éticas daquilo que realiza. Precisa dar prioridade à ética sobre a técnica, defendendo claramente o primado da pessoa sobre as coisas. Toda universidade católica precisa ser conduzida pelo princípio que une conhecimento e consciência de que a ciência só ajuda a humanidade se conservar o sentido de transcendência (ECE, 18).

Transcendência aqui significa a permanente vigilância para que todas as ações realizadas e todas as decisões tomadas dentro de uma universidade católica tenham como objetivo algo que está além dela mesma. E o que estaria além dela mesma? Uma “gestão de serviço” (ECE, 24) que ajude a dar respostas concretas aos problemas do nosso tempo, “como a dignidade da vida humana, a promoção da justiça para todos, a qualidade da vida pessoal e familiar, a proteção da natureza, a procura da paz e da estabilidade política, a repartição mais equânime das riquezas do mundo e uma nova ordem econômica e política, que sirva melhor a comunidade humana a nível nacional e internacional” (ECE, 32). Portanto, a universidade católica não pode ser apenas mais uma instituição de ensino superior à disposição das elites da sociedade. Ela, segundo o princípio apenas mencionado, precisa ser um espaço de promoção da solidariedade, da justiça e do correto desenvolvimento sustentável. E para fazer isso ela precisa “estudar em profundidade as raízes e as causas dos graves problemas do nosso tempo” (ECE, 32), ou seja, não pode apenas transmitir conhecimentos, mas ser instância pensante e que faz pensar, inclusive contrapondo-se, se necessário, a opinião pública e à corrente mercadológica atualmente predominante na educação privada.

E por que tudo isso? Porque a universidade católica existe para ser um espaço de realização da missão primária da Igreja Católica (ECE, 48-49). A universidade confessional católica não existe por existir. Existe para a evangelização. Se não existir com essa finalidade perde completamente o seu sentido e passa a ser apenas uma instituição qualquer. Evangelizar, no seu sentido mais profundo, e de acordo com a mensagem bíblica – fundamento do cristianismo – é anunciar uma boa notícia à humanidade, de modo particular aos mais pobres, sofredores e oprimidos. E o cristianismo genuíno sempre entendeu por “boa notícia” um anúncio acompanhado de ações concretas que contribuam para a libertação de toda forma de escravidão e de opressão (Lc 4,18-19). De acordo com este texto do evangelho de Lucas, há no verbo “evangelizar” uma tríplice ação-função: libertação da opressão, formação da consciência crítica e resgate da justiça.

A universidade católica, enquanto espaço evangelizador da Igreja, precisar se preocupar seriamente em fazer acontecer no seu interior essa tríplice função-ação. Precisa semear conhecimentos que contribuam para a libertação da humanidade, de modo particular dos pobres, oprimidos e excluídos. Precisa dinamizar sua atuação de modo que as pessoas que por ela passem sejam pensantes e críticas e não apenas meros consumidores de informação. Precisa se organizar de tal maneira que impulsione e fomente ações concretas em favor da justiça, num mundo marcado por desigualdades e violência. Por essa razão ela deve se pautar pela fidelidade à mensagem cristã (ECE,13) e ser uma instituição acadêmica, na qual o cristianismo esteja presente de um modo vital (ECE, 14) e não apenas como letra morta nos seus documentos institucionais.

4. Os pobres como referencial ético
O referencial ético de uma universidade católica é o serviço aos mais pobres, aos mais excluídos, aos marginalizados. Isso não quer dizer que uma universidade católica não possa estar aberta para todos. Significa apenas que, para ser cristã e católica, ela precisa priorizar o serviço aos pobres. Se numa universidade católica os pobres ficam em segundo lugar, isso é sinal de que ela já deixou de ser cristã e católica. A opção preferencial pelos pobres foi tida como referencial de avaliação da autenticidade do cristianismo desde as suas origens. Poucos anos depois de Cristo, quando o cristianismo começava a se expandir para além das fronteiras da Palestina, houve um momento de confronto entre os seus dirigentes para avaliar se o que estava sendo pregado aos fiéis de outras culturas era genuinamente cristão. Depois de uma boa discussão chegou-se à conclusão de que o que estava sendo pregado aos não judeus estava de acordo com a “ortodoxia” cristã. Mas, para evitar ambiguidades futuras, as lideranças se impuseram um critério decisivo de autenticidade do cristianismo: que os pobres tenham a prioridade (Gl 2,10; Tg 2,1-8).

Tenho notado, com certa perplexidade, que um bom número de universidades está se pautando mais pelo que dita o mercado do que pelas exigências de sua identidade confessional católica. Não resta dúvida de que a competição no campo da privatização da educação é feroz e, na maioria das vezes, sem nenhuma preocupação com a ética e com o bem comum. Porém, as universidades católicas não podem abrir mão dos princípios cristãos, pois perderiam por completo a sua identidade. Se não cuidarem de certos aspectos essenciais de sua missão evangelizadora, fazendo o diferencial, serão vistas pelas pessoas apenas como mais uma instituição que quer ganhar muito dinheiro com a educação, mesmo quando estiverem operando no vermelho.

Distanciando-se da realidade do povo e da finalidade evangelizadora, a universidade católica se torna uma instituição “decapitada” e promove a sua auto-anulação, uma vez que passa a não ser compreendida pela cultura na qual se encontra inserida. Não é mais um lugar de busca da transcendência e do sentido da vida, mas somente uma mera concorrente no mercado educacional, sem mais nenhum diferencial ético e cristão. É preciso, pois, que as organizações mantenedoras das universidades católicas pensem seriamente nisso e se deixem interpelar seriamente pelo Evangelho e pelos sinais dos tempos.

5. Querendo concluir: toda educação é ideológica
Para concluir quero chamar em causa o grande educador Paulo Freire. Ele nos lembrava na sua Pedagogia do oprimido (São Paulo: Paz e Terra, 2009, 39ª edição) que toda educação é ideológica (p. 125-134). E para Freire a ideologia é a “ocultação da verdade dos fatos, com o uso da linguagem para penumbrar ou opacizar a realidade ao mesmo tempo em que nos torna ‘míopes’” (p. 125). E, entre as formas mais sofisticadas de penumbrar a realidade e tornar míopes as pessoas, está aquela capacidade que a ideologia tem de nos amaciar: “nos faz às vezes mansamente aceitar que a globalização da economia é uma invenção dela mesma ou de um destino que não poderia se evitar, uma quase entidade metafísica e não um momento do desenvolvimento econômico submetido, como toda produção econômica capitalista, a uma certa orientação política ditada pelos interesses dos que detêm o poder” (p. 126).

Dentro dessa lógica uma universidade católica pode ser tentada a abandonar por completo a sua identidade e a sua missão para se auto-amaciar-se, com a desculpa de que não há alternativa dentro de um mercado altamente competitivo e antiético. Esta é uma lógica perversa e cruel, pois, como nota Freire, uma das formas mais eficazes da ideologia fatalista que invade também a educação “é convencer os prejudicados das economias submetidas de que a realidade é assim mesmo, de que não há nada a fazer, mas seguir a ordem natural dos fatos” (p. 127). Continuando sua fala Freire conclui afirmando que a ideologia tem a sua ética, mas “é a ética do mercado e não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente se optamos, na verdade, por um mundo de gente” (p. 127). Quando, pois, dentro de uma universidade católica falamos de uma “universidade com a qual sonhamos”, não podemos esquecer essas coisas todas. Lembrando que, salvo algumas raras exceções, o ambiente universitário é sempre marcado pela presença de pessoas inteligentes. E essas pessoas inteligentes sabem muito bem perceber quando “na prática a teoria é outra”. E se isso acontecer, a universidade católica desvia-se por completo de sua finalidade precípua.

* Filósofo, teólogo, doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma (Itália), escritor, conferencista, gestor do Centro de Reflexão e Estudos sobre Ética e Antropologia da Religião (Crear) da Universidade Católica de Brasília, onde também é professor.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Educação Superior no Brasil


Supermercados de diplomas
 

Prof. Dr. José Lisboa Moreira de Oliveira*
 

            Muito tem se falado nos últimos anos sobre a mercantilização da educação superior no Brasil, resultante, segundo Morais, da devastação intelectual e dos regimes discricionários que só criaram até agora uma pseudodemocracia (MORAIS, 2011, p. 24). Essa mercantilização, segundo o autor apenas citado, seria uma espécie de nova barbárie, uma vez que despreza por completo o mais precioso capital humano, a inteligência (Ibid., p. 30).

1. A mercantilização da educação

            Porém, quando falamos de “mercantilização da educação” no Brasil não devemos pensar apenas naquelas “faculóides” que oferecem cursos a R$ 1,99, sem se importar com o futuro que estão preparando para o país. Esse tipo de instituição de ensino superior (IES) é um mero “supermercado de diplomas” (Ibid., p. 70) que vende, no senso mais estrito da palavra, certificados e históricos escolares, e se mantêm funcionando porque as disposições legais que regem a educação superior no Brasil não são cumpridas e essas instituições não são seriamente fiscalizadas.

            A mercantilização da educação superior pode acontecer também em instituições que, se declarando sérias, vão, aos poucos, deixando-se seduzir pelos atrativos do mercado. Pressionadas pela lei da concorrência, essas instituições deixam de lado os objetivos da missão e a ética e terminam por ceder às imposições do mercado. E isso acontece porque os atuais discursos e práticas ideológicas neoliberais permeiam tudo, inclusive ajudando a dissimular a realidade:

A ideologia caracteriza-se por dissimular a realidade, apresentando como “naturais” elementos que na verdade são determinados pelas relações econômicas de produção, por interesses da classe economicamente dominante [...]. O discurso liberal permeia, entre nós, as propostas oficiais e muitas das concepções dos próprios educadores [...]. Essa tendência expressa uma visão da instituição escolar que chamaríamos de otimista e ingênua. Ela a vê como algo fora da dinâmica social, como impulsionadora desta dinâmica e acredita que, sendo espaço privilegiado de transmissão de cultura, a escola “dá o tom” à sociedade (RIOS, 2007, p. 35-36).

Tem razão Rios, uma vez que quem “dá o tom” é a visão neoliberal que tem no mercado o seu foco. Tudo vira mercadoria a ser vendida e negociada, inclusive a educação. E neste contexto as decisões não ficam por conta dos que fazem e dos que agem. Elas são tomadas pelos que investem:

[...] os empregados, os fornecedores e os porta-vozes da comunidade não tem voz nas decisões que os investidores podem tomar; e que os verdadeiros tomadores de decisão, as “pessoas que investem’, têm o direito de descartar, de declarar irrelevante e inválido qualquer postulado que os demais possam fazer sobre a maneira como elas dirigem a companhia (BAUMAN, 1999, p. 13).

            E de que maneira as IES, inclusive as públicas, cedem a essa pressão do sistema neoliberal? De várias maneiras, eu responderia. De um modo geral as IES continuam com um discurso bonito, defendendo princípios éticos e de uma educação de qualidade, voltada para a construção de um país justo e solidário. Na prática, porém, a teoria é outra.

2. Os passos da mercantilização da educação

            O primeiro passo, para a mercantilização neoliberal da educação superior, é a instalação de uma burocracia infernal que emperra tudo e não deixa nada funcionar.

[...] as universidades como sistemas complexos não sobrevivem sem os expedientes burocráticos. Naturalmente, há sistemas burocráticos inteligentes e que beneficiam os que delas participam, tanto quanto há autênticos emaranhados burocráticos que são estorvos ou, como já disse, barricadas de impedimento a determinados acessos; isto para a produção de cargos, vantagens e explorações espúrias (MORAIS, 2011, p. 61).

            A resultante da burocracia é a despersonalização das relações. Deixa de existir a comunicação entre pessoas que têm rosto e passa a vigorar a relação virtual. Os “donos” das empresas ou instituições (sejam elas públicas ou privadas) nunca são vistos e encontrados. Os funcionários de mais alto nível se comunicam mediante “chamados eletrônicos” e, com isso, escondem-se, livram-se e livram os donos da instituição de qualquer responsabilidade de discutir os problemas. As respostas são dadas eletronicamente, e os humanos que estão lá na ponta, suportando o peso de tudo, são os únicos a aguentar toda a carga explosiva das reclamações daqueles e daquelas que estão descontentes com os serviços prestados. Portanto, não há aqui o encontro com a alteridade. A distância é o produto final da burocratização. Falta proximidade, entendida como “um espaço do qual a pessoa pode sentir-se chez soi, à vontade, um espaço no qual raramente, se é que alguma vez, a gente se sente perdido, sem saber o que dizer ou fazer” (BAUMAN, 1999, p. 20). No caso das IES acontece como nos supermercados comuns: os que fazem a educação (estudantes, professores e funcionários) só se encontram com “os caixas”, os quais foram treinados para usar de esperteza, manha e de regras estranhas para “passar as informações”, evitando o máximo que os problemas cheguem aos patrões (Ibid., p.20-25).

            Dá-se, assim, uma desintegração da comunhão, um verdadeiro isolamento corpóreo ou, para usar uma expressão de Bauman, uma “incorporeidade” (Ibid., p. 25-28), no sentido que, devido a esse isolamento

[...] os detentores do poder tornam-se realmente extraterritoriais, ainda que corporeamente estejam “no lugar”. Seu poder está, real e integralmente, não “fora deste mundo” – não do mundo físico no qual constroem suas casas e escritórios supervigiados, eles próprios extraterritoriais, livres da intromissão de vizinhos de uma comunidade local, inacessíveis a quem quer que esteja (ao contrário deles) a ela confinado (BAUMAN, 1999, p. 26).

Decorrente dessa incorporeidade é o adoecimento daqueles e daquelas que são obrigados a cumprir os “veredictos baixados no paraíso ciberespacial” (Ibid., p. 27), veredictos esses que não podem ser questionados, mesmo porque as “autoridades” que emanam tais veredictos estão completamente distantes, isoladas em espaços nos quais não podem ser alcançadas. O adoecimento, muitas vezes, é visto pelos “donos do negócio” como irresponsabilidade e preguiça, mas, na verdade os trabalhadores e trabalhadoras estão doentes, com estresse ou síndrome de burnout:

Após se dar, por certo tempo, o envolvimento afetivo com seu trabalho, o profissional se desgasta de tal modo que, no extremo, desiste: o burnout o leva a não agüentar mais manter o sentido de trabalhar que, em época passada, o susteve (MORAIS, 2011, p. 91).

            Essa “desenergização afetiva que faz os educadores sentirem-se incapazes de doar humanamente mais si mesmos”, incide na capacidade de raciocinar, de criar e de produzir. Além disso, provoca sérios “bloqueios relacionais” que levam os profissionais a atitudes negativas e até mesmo cínicas (Ibid. p. 92). Entre as atitudes negativas não se descarta a real possibilidade de ações agressivas, através das quais as pessoas diminuídas em sua dignidade tentam, mesmo que inconscientemente, reagir à humilhação do isolamento na qual foram confinadas (BAUMAN, 1999, p. 29-31). No caso dos professores há uma dupla humilhação:

Muitas vezes o professor encontra também uma estrutura administrativa mediocremente autoritária que, desdobrando-se para não perder a clientela, trata os docentes como se lhes fizessem o imenso favor de mantê-los na instituição [...]. Muitas vezes, os alunos não valorizam a pessoa culta que busca auxiliar-lhes no desenvolvimento humano e profissional; outras tantas vezes, os administradores institucionais tratam esse docente culto e esforçado apenas como um necessitado de emprego. Nesse caso também a maioria cognitiva desestabiliza o tônus emocional do docente, causando-lhe confusão íntima e desgaste (MORAIS, 2011, p. 88-89).

            No que diz respeito às IES confessionais e/ou comunitárias o risco de sucatear a educação, e de transformar a instituição de ensino em mero supermercado de diplomas, cresce cada dia mais. Morais identificou a principal causa deste risco. A citação é longa, mas vale a pena apresentá-la por inteiro:

Ocorre que mesmo organizações comunitárias confessionais têm chamado, para sua orientação interna, o que há de pior. São umas consultorias – elas mesmas empresas atualmente muito rentáveis – que em nada podem auxiliar os meios educacionais, uma vez que têm uma visão precariamente empresarial de educação e ensino. Pestalozzi, Freinet, Paulo Freire e Dom Bosco nunca contratariam os arautos do financismo consumista para opinarem sobre a educação. Como viajo muito e muito observo, conheci várias faculdades e centros universitários que visivelmente cresciam em respeitabilidade e projeção social, até que se submeteram às “orientações” dessas consultorias e auditorias; logo em seguida, tiveram maior conta bancária e menor prestígio institucional. Que as indústrias e organizações comerciais chamem economistas para orientá-las; mas que também as organizações educacionais e de ensino convoquem educadores, cientistas sociais e pessoas competentes em gestão educacional para mostrar-lhes caminhos que levem a um melhor futuro para o nosso país. Infelizmente, sempre respeitadas algumas exceções, tenho visto organizações acadêmicas comunitárias (e mesmo confessionais) entregues a administradores que, pouco se importando com educação e ensino, vão, com o auxílio de alguns disfarces ou mesmo abertamente, aceitando para esses meios universitários os mais mesquinhos valores empresariais e de mercado (MORAIS, 2011, p. 101-102).
 

Burocratização, despersonalização das relações, distância, desintegração da comunhão, adoecimento e bloqueios relacionais terminam fazendo da IES um supermercado de diplomas, uma vez que tudo isso “obstaculiza o envolvimento pessoal” dos educadores. E quando isso acontece se desemboca “no prejuízo intelectual e existencial às novas gerações, o que significa prejuízo social maior a curto, médio e longo prazos” (MORAIS, 2011, p. 92-93).

3. Caminhos para sair do “supermercado de diplomas”

            Há algum caminho para sair do “supermercado de diplomas”? Claro que sim, mas tudo depende do modo como gestores e professores lidarão com essa situação. Antes de tudo é preciso que se distinga gestor de administrador. Se houver confusão entre as duas coisas a IES necessariamente se reduzirá a “supermercado”:

O gestor administrativo faz muito mais do que dar ordens impositivas, cuidar de custos e lucros ou calcular investimentos. As palavras nucleares do discurso administrativo são: controlar e cobrar. O objetivo das administrações se resume a que haja funcionalidade sem conflitos. O gestor coordena e anima a totalidade institucional, sendo indispensável que tenha competência para cuidar: a) da gestão de resultados educacionais, para os indivíduos e para sua sociedade; b) da gestão participativa, isto é, descentralizada, e com divisão de responsabilidade; c) da gestão pedagógica, atenta à qualidade do ensino e da educação; d) da gestão de pessoas, seja nas relações interpessoais internas, seja nas relações com o meio social; e e) da gestão de serviços de apoio, bem como de recursos físicos e financeiros [...]. Ora, em uma sociedade de grandes interesses lucrativos, as faculdades, centros universitários e universidades têm conhecido muito puros administradores do que gestores dotados de ideal educativo (MORAIS, 2011, p. 37-38)

            Em segundo lugar é indispensável que as IES, vencendo todo “pragmatismo empresarial” tratem cada um dos seus colaboradores como pessoa, ou seja, como “unidade biológica enriquecida por todos os conteúdos íntimos e relacionais dos seres humanos”. E isso deve ser dito porque são pouquíssimas as “instituições muito sérias e conscientes, que tratam seus contingentes de professores e alunos como pessoas” (Ibid., p. 71). De nada servem, diz Morais, o “tartamudeio de slogans” se, na prática as pessoas são tratadas de modo impessoal, distante, levando os colaboradores a se sentirem desprezados e despojados de sua dignidade.

            Além disso, é necessário que a IES se veja como centro de pensamento e de debate, pois, se assim não for, terminará sendo “uma agência (mais complexa, embora) de comercialização de habilitações e de diplomas” (MORAIS, 2011, p. 82). Muitas vezes, para evitar gastos e para não possibilitar a formação de uma consciência crítica, tende-se a baratear a educação, evitando investir em atividades que discutem ideias e promovem valores. Assim cria-se um círculo vicioso no qual uma coisa leva à outra. Desta forma a IES se reduz a uma organização acadêmica voltada para “meros caçadores de diplomas, que ainda garantem algum status ou promoções em empregos públicos” (Ibid., p. 105), mas não forma o cidadão e a cidadã.

            Quanto a nós professores é indispensável que não encenemos o nosso trabalho, fingindo atuar seriamente, quando, na verdade e às vezes, apenas dissimulamos e não queremos realizar nada de construtivo. Além disso, é sumamente importante, especialmente quando ocupamos cargos de confiança dentro da IES, que evitemos alianças e cumplicidades com os maus administradores. Muitas vezes, para garantirmos a perpetuação da cadeira onde sentamos, somos coniventes e silenciamos diante de situações desumanas e antiéticas:

Os auxiliares de administração que ocupam cargos de confiança tanto podem ser vítimas das decisões mais altas e autoritárias, quanto podem ser culpados de uma aliança prazerosa com os maus administradores. E o chamado “efeito cascata” se prolonga com coordenadores – também ora vitimados, ora propriamente culpados, à semelhança dos médios oficiais nazistas que alegavam apenas cumprir ordens (MORAIS, 2011, p. 97).

            Por fim, da parte de todos e de todas é sumamente indispensável pautar-se sempre por princípios éticos fundantes. Quando as pessoas que fazem uma IES esquecem a ética, a instituição não é reduzida a um “supermercado”, mas um mero “botequim de esquina de rua”, onde se serve bebida adulterada e comida estragada. Numa IES desse tipo,

O ideal de formação do cidadão, homem emancipado e livre, através da razão, transformou-se no “ideal” do homem submisso à ordem burguesa e aos seus interesses, disposto a aceitar as regras do mercado e a instrumentalização do ser humano a seu serviço. A razão, ela própria, conforme denunciam com muita propriedade Adorno e Horkheimer, de instrumento de emancipação, tornou-se instrumentalizada (GOERGEN, 2001, p. 61)

            Finalmente, para que não aconteça esse fim tão trágico é preciso que as IES cultivem dentro delas, de forma prática e efetiva, a pastoralidade, entendida como “espaço de cidadania”, no qual a educação seja uma ação política, isto é, uma ação que esteja a serviço da libertação integral de todas as pessoas que circulam dentro dela e ao redor dela (OLIVEIRA, 2011, p. 60-64). Cultivar a pastoralidade é cultivar a ética, ou seja, a abertura ao “Outro”, entendido como sujeito aberto a possibilidades sempre novas. E a ética de uma IES se conhece pela sua capacidade de ser uma instituição humana e humanizante (Ibid., p. 73-74).

Referências bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. Globalização. As consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

GOERGEN, Pedro. Pós-modernidade, ética e educação. Polêmicas do nosso tempo. Campinas: Autores Associados, 2001.

MORAIS, Regis de. Um abominável mundo novo? O ensino superior atual. São Paulo: Paulus, 2011.

OLIVEIRA, José Lisboa Moreira de. Universidade em pastoralidade. Ética nas instituições de ensino superior. São Paulo: Loyola, 2011.

            RIOS, Terezinha Azerêdo. Ética e competência. São Paulo: Cortez, 2007, 17ª edição.



* Licenciado em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília e doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma. Escritor e conferencista. Gestor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (Crear) da Universidade Católica de Brasília, onde também é professor.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Pastoralidade*

Texto institucional da UCB aprovado pelo CONSEPE*
1. Na UCB um dos princípios estruturantes é a pastoralidade. Como definido no Projeto Pedagógico Institucional, na prática da pastoralidade da UCB “não está em jogo uma doutrina, um proselitismo ou uma exigência confessional, mas uma profissão de fé numa instituição que tem como sonho uma humanidade fraterna, solidária e feliz” (PPI p. 18).
2. O conceito de pastoralidade se configura a partir da imagem do pastor, figura marcante na vida e na cultura dos povos da região conhecida como Baixo Mediterrâneo, e que se consagrou no Ocidente a partir do ícone bíblico de Jesus Bom Pastor. Sob essa inspiração a UCB adotou o conceito de pastoralidade como um daqueles princípios que expressam a sua identidade e a sua missão. Por meio dele a UCB quer afirmar que os seus pressupostos são os valores humanos, éticos e cristãos, os quais constituem também o seu ethos.
3. Através da pastoralidade, a UCB, enquanto instituição de ensino superior, quer ser uma presença significativa, cuidando da alteridade, ou seja, da qualidade de vida das pessoas que a compõem e colaborando para o desenvolvimento sustentável do ambiente onde ela está situada. Por isso procura compreender e interpretar a pessoa humana como ser situado num determinado contexto, numa situação histórica, social, política, religiosa e econômica concreta. No exercício da pastoralidade o homem e a mulher são vistos como seres situados num tempo e num espaço e não de forma atemporal ou supratemporal, fora da sua realidade e de sua contextualização. A pastoralidade sinaliza, pois, para a alteridade, o acolhimento, o respeito à subjetividade e a oferta inteira do melhor de nós mesmos e do que fazemos, bem como a busca de auto-transcedência e de transcendência.

A pastoralidade como princípio estruturante
4. Assumir a pastoralidade como princípio estruturante, significa crer que não existe uma pessoa ou uma sociedade já acabadas, constituídas, mas que se constituem “acontecendo”. Significa acreditar que cada pessoa ou coletividade humana não é apenas um passado, ou seja, aquilo que foi até agora, mas é também um potencial que ainda está em construção. A pastoralidade é, pois, abertura, entendida como maneira original de perceber as pessoas não somente a partir do que já existe nelas, mas também, e, sobretudo, a partir do potencial de criação e transformação possível que elas carregam. A pastoralidade significa ver e compreender o ser humano como ser-em-construção.
5. A pastoralidade se expressa no esforço permanente da UCB para viver constantemente a fidelidade à sua missão. Enquanto princípio estruturante leva a nossa universidade a pensar na formação integral da pessoa humana e a realizar uma permanente e qualificada inserção e interação com mundo, sendo cada vez mais presença solidária no contexto onde ela está situada. A pastoralidade a coloca em movimento constante de transformação e de abertura das novas possibilidades de existência.
6. A pastoralidade, no sentido apenas mencionado, se justifica pelo fato de que existe sempre o risco, na dinâmica das relações humanas, de uma interação com o outro que seja pautada por preconceitos dos mais diferentes tipos. Muitas vezes a nossa interpretação se guia por uma visão fixa que, na maioria das vezes, tem presente apenas detalhes ou recortes, recusando-se a ver a totalidade da pessoa.
7. Esta constatação nos leva a perceber, antes de tudo, a necessidade de cultivar uma disposição fundamental para a abertura privilegiada da presença, entendida como preocupação permanente em adequar-se para chegar à compreensão do outro. Isso se chama abertura à transcendência, ou seja, busca permanente de superação de si mesmo para chegar até onde o cultivo da pastoralidade propõe.
8. Abertura à transcendência nada mais é do que a consciência e a convicção de que, enquanto realidade humana, toda instituição passa constantemente por processos de construção. Não é uma realidade acabada. Por essa razão precisa se convencer de que é portadora de um poder-ser que ainda não se realizou plenamente.

Pastoralidade como presença
9. Tendo presente essa constatação, é indispensável que a UCB cultive como sua prática normal a avaliação da sua existência e do seu papel na sociedade. Trata-se do esforço permanente para abrir-se às possibilidades reais de uma nova experiência que transforme a instituição e a leve a aproximar-se o máximo possível da sua finalidade ou missão.
10. Através do cultivo da pastoralidade a UCB quer realizar um mergulho na realidade, no contexto onde ela está situada, de modo que isso lhe confira condições de chegar a ser, de fato, presença no ambiente onde se localiza. Ela está sempre em busca do mais e do melhor. Preocupa-se permanentemente em ser o que deve ser. E como toda instituição é feita de pessoas, é indispensável que cada pessoa que a compõe esteja imbuída dessa preocupação.
11. Para ser o que deseja ser, a UCB precisa, constantemente, na sua totalidade conjuntural, ir além dela mesma, isto é, por meio das pessoas e âmbitos que a constituem, caminhar na direção daquilo que é a meta da sua vocação e missão.
12. Esse esforço é promissor uma vez que proporciona a UCB o desejo de autotranscender-se, descobrindo o mundo real que está em volta dela. Abre, de maneira originária e direta, o seu mundo para o mundo no qual ela se encontra. Tal abertura ou autotranscendência a leva a perceber sua realidade concreta e a ser também aquilo que a realidade pede que ela seja.

Pastoralidade: presença que cuida
13. Podemos então afirmar que a pastoralidade, princípio estruturante da UCB, é, antes de tudo, a consciência de que o atual modo de ser pode ser mais. O modo como se acolhe, se respeita e se cuida das pessoas, enquanto possibilidade, não pode ser pautado por aquilo que sempre foi ou já é, mas por aquilo que pode ser, tendo presente a responsabilidade que nos é confiada. Através da pastoralidade a UCB fará o exercício de progressivamente se abrir ao poder-ser. Somente essa autotranscendência confere-lhe potencialidade, fazendo com que ela não permaneça estranha, indiferente e alheia à realidade.
14. Pelo cultivo da pastoralidade como autotranscendência a UCB não fica à espera de situações extremas para fazer as necessárias mudanças, mas faz da avaliação do seu cotidiano a atitude permanente do seu modo próprio de ser presença. Adotando a avaliação como princípio metodológico ela permite que o esforço e a atuação das pessoas que a compõem tenham uma abrangência maior e sejam capazes de ir além da simples atividade “pastoral”. Tal princípio metodológico lhe permite descobrir seus potenciais e lhe dá condições de oferecer seu serviço não apenas a um grupo confessional, mas a toda humanidade, particularmente aos seus estudantes e às comunidades do Distrito Federal. Um serviço de qualidade que seja também um projeto educacional libertador e transformador, fomentando a prática da justiça social.
15. A pastoralidade, não sendo fim em si mesmo, está voltada para o desejo de ser uma presença que cura, isto é, uma presença que leva a UCB a se tornar uma instituição voltada para o poder-ser das pessoas. Pelo cultivo da pastoralidade ela desenvolve suas possibilidades e potencialidades para ir também ao encontro da comunidade onde está situada, acolhendo suas propostas e sugestões, seus saberes e conhecimentos.
16. Por meio da pastoralidade a UCB revisa de forma permanente a sua estrutura de instituição, de modo que possa abrir-se às possibilidades de um projeto que, transcendendo-se, faça dela um autêntico espaço de humanização, de cuidado com a vida. A pastoralidade lhe permite superar toda forma de amor impotente, isto é, daquele tipo de amor pelo ser humano que apenas seduz e fascina, mas que não é capaz de oferecer nada. A pastoralidade, enquanto princípio estruturante, é o cultivo do amor responsável que contribui efetivamente para a libertação integral das pessoas.

Linhas de ação
17. Para efetivar a pastoralidade a UCB adota para seus professores e funcionários as seguintes linhas de ação:

Quanto ao modo de observar as pessoas:
a) Ter uma maneira original de ver as pessoas, não só a partir do que elas já são ou aparentam ser, mas a partir do que elas podem ser;
b) Ver as pessoas “por dentro”, na sua totalidade e realidade, e não de forma atemporal e supratemporal;
c) Interpretar a situação concreta de cada pessoa e dos contextos sociais, políticos, econômicos e religiosos onde ela se encontra, projetando outras possibilidades dentro de cada situação;
d) Perceber o que realmente está acontecendo com as pessoas, cultivando a sensibilidade e a compaixão;
e) Exercitar a prática da escuta, procurando sempre ouvir o que as pessoas têm a dizer, partindo sempre do princípio de que não existem seres humanos desprovidos de saberes e de conhecimentos.

Quanto ao modo de avaliar as pessoas:
a) Avaliar as pessoas sem se fixar numa posição, numa concepção prévia, num único ponto de vista;
b) Evitar, portanto, se fixar num detalhe, numa particularidade, num único aspecto da vida da pessoa;
c) Ver a pessoa como ser-em-possibilidades, em construção;
d) Compreender a pessoa e elaborar, ou reelaborar, as possibilidades presentes na compreensão.

Quanto ao modo concreto de agir com as pessoas:
a) Acreditar sempre no potencial de cada homem e de cada mulher;
b) Investir cada vez mais nesse potencial;
c) Assumir o compromisso com a qualidade acadêmica da UCB;
d) Cultivar de modo permanente o cuidado com a presença, esforçando-se para abrir-se a novas possibilidades reais e concretas;
e) Esforçar-se para superar o risco da insignificância dos atos, a estreiteza das ações e para descobrir a falta de sentido de determinadas programações e atividades;
f) Superar todo medo da análise existencial e institucional;
g) Esforçar-se sempre para traduzir em ações concretas a missão da UCB, voltada para a libertação integral das pessoas.
h) Assumir de modo permanente o compromisso com a ética e com um tipo de desenvolvimento sócio-ambiental verdadeiramente sustentável e viável.

Quanto ao modo de celebrar a vida:
a) Agradecer e celebrar o dom da vida de cada pessoa que faz a UCB;
b) Agradecer e celebrar a presença de cada pessoa dentro da instituição;
c) Comungar com as alegrias e com as pequenas vitórias de cada pessoa que compõe a UCB;
d) Ser solidário com as dores e os sofrimentos de cada pessoa e de suas famílias;
e) Agradecer a cada pessoa por seus serviços, seus trabalhos e suas potencialidades;
f) Agradecer por suas intuições, suas sugestões, suas idéias, criações e iniciativas.

Além do horizonte
Em sua Carta de Princípios a UCB se define como “comunidade acadêmica de ensino, pesquisa e extensão, articulados indissociavelmente, que contribui, de modo rigoroso e crítico, para a defesa e o desenvolvimento do ser humano e da cultura”. Seus princípios fundantes são: a valorização da vida em todas as suas formas; o respeito à dignidade da pessoa humana e à liberdade pessoal; a busca da verdade e do transcendente; o relacionamento de estima consigo mesmo, com os outros, com o mundo e com Deus. Seu sonho é a “construção da comunidade, por meio do testemunho solidário do convívio fraterno e da co-responsabilidade”.
A UCB acredita que essa é sua contribuição para uma sociedade à medida do ser humano. Está convencida de que a pastoralidade, nos termos que acabam de ser delineados, é, entre os demais, o caminho mais simples e mais objetivo para atingir essa meta. Espera, com isso, que em 2020, ao celebrar os seus 25 anos de existência, ela possa ser reconhecida em todo lugar como uma Universidade que promove a justiça social e contribui efetivamente para a valorização da vida e dos direitos das pessoas e dos povos.

Para ajudar na reflexão
1. Que elementos desse texto institucional mais lhe chamaram a atenção?
2. O que na UCB ajuda ou impede a concretização dessa proposta?
3. De que maneira podemos tornar efetivo esse texto na docência das duas disciplinas do CREAR?
4. Que outras sugestões você teria para fazer com que esse texto institucional passe da teoria à prática?