Manifestação sem reflexão é alienação
José Lisboa Moreira de Oliveira*
Há alguns dias o nosso país está
sendo palco de numerosas manifestações de pessoas, que tomam as ruas para
protestar contra situações consideradas injustas. Tudo parece ter começado em
São Paulo numa reação contra o aumento da passagem dos transportes coletivos.
Mas aos poucos outros “ingredientes” foram sendo acrescentados ao “cardápio”
das reinvindicações: os escandalosos gastos com a Copa do Mundo de futebol, a
volta da inflação que atinge de modo todo especial os alimentos, a corrupção
política, o descaso com setores fundamentais como a saúde e a educação, e assim
por diante.
A manifestação pública, o protesto,
as marchas etc. são expressão de uma democracia participativa e sinal de que
estamos acordados e reagindo a situações insuportáveis que causam indignação e
perplexidade. Por essa razão essas manifestações são não só legítimas, mas
profundamente necessárias para se garantir a efetiva democracia e o exercício
da cidadania. Querer impedi-las seria o mesmo que colocar-se contra a prática
democrática. O direito à manifestação e à liberdade de opinião não pode ser
visto como “surto psicótico” ou “histeria coletiva”. Isso está garantido pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Constituição Federal do
Brasil. Portanto, é algo normal e faz parte do jogo democrático.
Porém, isso não significa que a manifestação e o protesto por
si próprios sejam suficientes para resolver os problemas de uma nação. Uma
manifestação, por mais extensa e expressiva que seja, não revela
necessariamente a maturidade democrática de um povo. Dependendo do caso, pode
ser sinal de desespero, de crise e até mesmo de violência coletiva. Para que
possam revelar-se como sinal de maturidade política os atos públicos precisam
ser acompanhados de bastante reflexão e de racionalidade. Do contrário, se
esvaziam e não conseguem atingir plenamente seus objetivos. Essa reflexão e
essa racionalidade precisam ser cultivadas antes de tudo a nível individual.
Mas precisam ser feitas também em vários espaços coletivos de nossa sociedade.
A reflexão e a racionalidade são
necessárias para que se evite o risco gravíssimo de se tentar encontrar “bodes
expiatórios”, ou seja, culpados para o que está acontecendo no país. Infelizmente
a história e as pesquisas mostram que nesses momentos há uma tendência
generalizada das multidões em buscar responsáveis, ou até um responsável pelas
situações críticas. E, lamentavelmente, na maioria das vezes, “os bodes
expiatórios”, que pagam o preço amargo da fúria das multidões, são pessoas
inocentes que nada têm a ver com o que acontece, ou que não são as únicas
responsáveis pelos males que afetam um povo ou uma nação.
O antropólogo francês René Girard
tem estudado muito esse tema. No seu livro O
bode expiatório (São Paulo: Paulus, 2004) ele analisa alguns aspectos da
questão. Girard, antes de tudo chama a nossa atenção para o fato de que esse
tipo de manifestação acontece quase sempre em períodos de crise e de
enfraquecimento das instituições. A crise e o enfraquecimento das instituições
“favorecem a formação de multidões,
isto é, de ajuntamentos populares espontâneos, suscetíveis de substituir
instituições enfraquecidas ou de exercer pressão decisiva sobre elas” (p. 19).
Essa pretensão de querer substituir o papel decisivo das instituições pode
levar a uma cegueira desesperada e
obstinada que não admite nenhuma outra lógica a não ser a radicalidade
exacerbada, terminando por levar a mobilização popular a contradições e a fazer
na prática o que tanto repudia. Combate-se a injustiça com a injustiça, a
violência com a violência. E isso, como mostram os fatos históricos, não leva a
nada.
Um segundo elemento apontado por
Girard é o fato de que nessas mobilizações as pessoas, geralmente, se recusam a avaliar a própria
responsabilidade pelo que está acontecendo. Os manifestantes mais do que
avaliar a si próprios “têm forçosamente a tendência de reprovar tanto a
sociedade em seu conjunto, o que não os compromete com nada, como os outros
indivíduos que lhes parecem particularmente nocivos por razões fáceis de
desvendar. Os suspeitos são acusados de crimes de um tipo particular” (p. 22).
É importante, por exemplo, que os manifestantes sejam levados
a pensar nos pequenos atos cotidianos de corrupção que normalmente praticamos. Seria
bom que o estudante que participa da passeata fizesse uma autoanálise de si
mesmo, para ver se não costuma, de vez em quando, apresentar um plágio como sendo
trabalho de sua autoria. Que o professor manifestante pensasse na sua forma de
exercer a docência. Não teria sido alguma vez um ato de corrupção? Que o
funcionário público que participa das passeatas pudesse confrontar a sua forma
de trabalhar e de atender o cidadão comum. Que os fanáticos torcedores,
certamente muitos deles presentes nessas manifestações, pensassem no modo como
se comportam nos estádios e no modo como idolatram o futebol. Que os meninos e
as meninas de classe média pudessem questionar seus pais sobre o modo como
tratam seus funcionários, especialmente aqueles mais simples, aqueles que lavam
as latrinas de suas casas chiques. Que o trabalhador comum pudesse analisar o
seu modo de se comportar na fila de ônibus, na fila do banco ou na fila do
refeitório da empresa onde trabalha. Não estaria ele, algumas vezes e na
prática, querendo levar vantagem em tudo? E a lista poderia se multiplicar. Se
faltar isso, as manifestações terminam dando em nada. Quando tudo terminar,
vamos ver que a vida continua do mesmo jeito, uma vez que a corrupção que levou
o político corrupto até o Congresso Nacional está arraigada em cada um e em
cada uma de nós. E se não for expurgada a corrupção que mora dentro de cada
pessoa, não há como expurgá-la das instituições.
Além da reflexão individual é fundamental que as instituições
(famílias, igrejas, escolas, universidades, sindicatos, ONGs etc.) também façam
sua reflexão e ajudem a refletir. Não é nenhuma novidade o fato de que a
família vem abdicando de sua responsabilidade educativa. As igrejas se
transformaram em “supermercados da fé” e na sua grande maioria se limitam a
vender “kits de salvação”, recusando-se a pensar e a educar seus fiéis para uma
consciência crítica. As escolas, por várias razões, não mais educam. As
universidades se transformaram em “supermercados de diplomas” e o sindicatos,
quase todos pelegos, se limitam a promover shows, sorteios e bingos no dia do
trabalhador. As ONGs, salvo honrosas exceções, se transformaram na forma mais
fácil de embolsar o dinheiro público e de garantir boa vida para suas cúpulas.
Esta reflexão coletiva é indispensável, uma vez que a
corrupção dos indivíduos é alimentada pela corrupção das instituições. Se, por
um lado, os indivíduos corruptos favorecem as instituições corruptas, por outro
as instituições corruptas criam estruturas e ambientes que induzem à corrupção
individual. E, lamentavelmente, em momentos como esses de mobilizações
coletivas a instituição, seja ela qual for, ao invés “de ver no microcosmo
individual um reflexo ou uma imitação do nível global, ela procura no indivíduo
a origem e a causa de tudo o que a fere. Real ou não, a responsabilidade das
vítimas sofre o mesmo engrandecimento fantástico” (GIRARD, p. 30). Não por
acaso as mobilizações que estão acontecendo no Brasil tiveram início após uma
campanha maciça da grande mídia em favor da redução da maioridade penal.
Sem reflexão e sem racionalidade as manifestações, além do
risco de apelar para a violência, acabam em nada e não servem para nada. Podem
simplesmente, mesmo que de forma inconsciente, tornarem-se massa de manobra e
de manipulação daqueles que não querem que as pessoas pensem e tenham
consciência crítica. Além disso, podem penalizar vítimas inocentes e pessoas
que não são as únicas responsáveis pelo que está acontecendo. “Os perseguidores
acabam sempre por se convencer de que um pequeno número de indivíduos ou até
mesmo um só pode tornar-se extremamente nocivo para toda a sociedade, apesar de
sua relativa fraqueza [...]. A multidão tende sempre à perseguição, pois as
causas naturais daquilo que a perturba, daquilo que a transforma em turba, não pode interessá-la. A
multidão, por definição, procura a ação, mas não consegue agir sobre as causas
naturais, procura, então, uma causa acessível e que satisfaça seu apetite de
violência” (GIRARD, p. 23).
Isso ficou evidente, por exemplo, nas depredação do
patrimônio público praticadas por algumas pessoas durante as manifestações.
Ficou evidente também na tentativa de alguns de não permitir a presença de
partidos políticos nas passeatas, como se fosse possível uma democracia sem
partidos e como se todos os partidos fossem iguais. Ficou evidente ainda na
manifestação de ira e de agressividade contra alguns políticos que há pouco
tempo assumiram o poder executivo. Girard nota com perspicácia que nas
manifestações públicas tende-se a punir “o último a chegar” (p. 26-27) como se
ele fosse o único responsável por tudo. Com isso esquecem-se os responsáveis
que há séculos perpetuam uma situação de injustiça. No caso do Brasil, ao se
enfurecer contra os políticos que no momento ocupam funções executivas, a
multidão não percebe que somos vítimas de um colonialismo que já dura mais de
quinhentos anos. Não se trata de absolver os atuais políticos, mas de nos
darmos conta de que há um sistema secular de opressão. E se não quebrarmos essa
corrente colonial, não há como resolver o problema.
Portanto, sem reflexão e sem racionalidade as manifestações
correm o risco de serem alienadas, uma vez que, passada a euforia do momento,
tudo volta a ser como era antes. Precisamos levar as reinvindicações das ruas
para o debate na família, nas igrejas, nas escolas, nas universidades, nos mais
diversos grupos humanos. Não podemos nos perder na lógica perversa de separar a
sociedade brasileira entre bons e maus, uma vez que dentro de cada um e de cada
uma de nós mora um anjo e um demônio. O que precisamos é pensar, refletir e
falar dessas coisas entre nós para termos condições de identificarmos as
verdadeiras causas da corrupção e das injustiças. Se não fizermos isso corremos
o risco de criarmos e punirmos inocentes que, tratados como verdadeiros “bodes
expiatórios”, pagarão o preço amargo por uma situação da qual não são
responsáveis. E, infelizmente, nesses momentos de agitação social a tendência é
punir pessoas rotuladas e tidas como anormais
pela multidão. Geralmente tais pessoas pertencem a grupos sociais e étnicos
estigmatizados ou estereotipados. E “quando um grupo humano tomou o hábito de
escolher suas vítimas em certa categoria social, étnica e religiosa, ele tende
a lhe atribuir as doenças ou deformações que reforçariam a polarização vitimária,
caso elas fossem reais” (GIRARD, p. 27). Que o digam os negros, os indígenas,
os homossexuais, os membros das religiões afro-brasileiras e outras categorias
de pessoas profundamente discriminadas em nosso país. Inclusive por pessoas que
certamente estão participando das manifestações.
*
Filósofo, teólogo, escritor, conferencista, gestor do Centro de Reflexão e
Estudos sobre Ética e Antropologia da Religião (Crear) da Universidade Católica
de Brasília, onde também é professor.