A identidade
e a missão da universidade confessional católica
Prof.
Dr. José Lisboa Moreira de Oliveira*
A
universidade é uma instituição surgida na Europa no século XII, por volta do
ano 1150, no contexto do Renascimento, por inciativa da Igreja Católica
Apostólica Romana. No início chamava-se “Studium generale” (Estudos gerais) e
tinha apenas dois cursos: Filosofia e Teologia. Porém, dentro desses cursos,
especialmente da Filosofia, estavam incluídas outras ciências como geometria,
aritmética, medicina e direito. Porque estes estudos tinham um caráter bastante
amplo, a universidade passou a se chamar Universitas magistrorum et scholarium, ou seja, universidade do ensino e do estudo.
Com o passar do tempo a designação ficou resumida ao simples termo
“universidade”.
Aos poucos
os países foram assumindo a responsabilidade da educação e começam a serem
criadas universidades públicas. Porém, as universidades católicas nunca
deixaram de existir. Atualmente, segundo dados que circulam na internet,
existem cerca de 1360 universidades católicas no mundo.
1. Normas para as universidades católicas
Desde o
surgimento da universidade até o presente, a Igreja Católica tem procurado
emanar normas e orientações para as suas instituições de ensino superior.
Durante o Concílio Vaticano II, realizado entre 1962 e 1965, num documento
sobre a educação cristã, intitulado Gravissimum educationis (GE),
promulgado em 28 de outubro de 1965, os bispos católicos do mundo inteiro propuseram
algumas indicações, tendo presente o contexto dos anos 1960, profundamente
marcados por várias revoluções, transformações e pela ideologia do progresso. Quando
se referiram às escolas católicas os bispos foram incisivos em afirmar que elas
deveriam ter três objetivos específicos: contribuir para o
desenvolvimento dos “serviços sociais”, oferecer educação aos mais pobres e
formar bons professores (GE, 9). Estava fora de cogitação toda e qualquer ideia
de uma universidade “fábrica de canudos”, voltada para a formação burguesa de
profissionais liberais sem compromisso social.
Quando
falaram especificamente das universidades e faculdades católicas, além de
ressaltar o significado delas para o diálogo entre fé e razão e para a
investigação científica, os bispos católicos pediram que as mesmas
contribuíssem para o exercício da cidadania. Deviam preparar pessoas capazes de
atuar eticamente na política e na promoção do bem-comum. Por isso, as
universidades e faculdades católicas, especialmente nos países mais pobres, deviam
facilitar o ingresso no ensino superior dos jovens mais pobres (GE, 10). Essa
proposta dos bispos católicos elimina toda e qualquer possibilidade de uma
universidade de corte neoliberal, elitista e excludente. Seria uma tremenda
contradição.
Depois
disso, outros documentos foram publicados. Um deles foi a Constituição
Apostólica Ex corde Ecclesiae (Do coração da Igreja), datada de 15 de
agosto de 1990 e assinada pelo papa João Paulo II. Tendo presente este
documento, pretendo fazer agora algumas considerações sobre a missão da
universidade católica. O que vai ser dito logo em seguida é a minha interpretação
daquilo que a própria Igreja Católica manifesta nesse documento sobre as suas
universidades.
2. Universidade a serviço da verdade
A primeira coisa que o
documento Ex corde Ecclesiae (ECE)
afirma é que a universidade católica tem a responsabilidade “consagrar-se sem reservas à causa da verdade” (ECE,4). De acordo com o papa, esta “é
a sua maneira de servir ao mesmo tempo a dignidade do homem e a causa da Igreja”.
Do contexto do parágrafo deduz-se que a verdade aqui significa buscar com
inteligência e amor tudo aquilo que pode contribuir para a afirmação da
dignidade humana, da liberdade e da justiça. Nesse sentido, pode-se afirmar,
sem medo de errar, que se a universidade católica não estiver comprometida com
a busca dessa verdade, ela estará traindo a sua própria identidade e missão.
Toda decisão, atitude e ação que visem ofuscar a verdade, obscurecer a
transparência e camuflar a realidade atentam contra os princípios católicos.
Um segundo princípio
constitutivo da identidade e da missão da universidade católica é “o esforço conjunto da inteligência e da fé” para que as pessoas possam “alcançar
a medida plena de sua humanidade” (ECE, 5). Isso quer dizer que uma
universidade católica não existe para ser um mero “supermercado de diplomas”. Para
ser de fato católica, ela precisa ter compromisso com a humanização da humanidade. Uma universidade que se orienta
exclusivamente pela política mercadológica e, a partir disso, se programa e se
reprograma, sem se preocupar em dar uma contribuição efetiva para a humanização
do mundo, já deixou de ser católica. E para contribuir com a humanização ela
precisa, antes de tudo, humanizar-se, isto é, desenvolver políticas internas de
respeito pelas pessoas que nela trabalham e circulam. Precisa cuidar bem das
pessoas, tratá-las com dignidade, valorizando cada ser humano que nela atua e
se encontra.
De acordo com o documento papal, um
terceiro elemento constitutivo da identidade e da missão de uma universidade
católica, decorrente dos anteriores, é o respeito
pela pluralidade e pela imensidade dos campos do saber, cuja expressão
disso é um fecundo diálogo (ECE, 6).
Disso se deduz que toda forma autoritária, dominadora, excludente, burocrática,
não participativa e fechada de conduzir uma universidade católica, não
manifesta a sua verdadeira identidade. E como isso está relacionado com a busca
da verdade, podemos deduzir que a falta de transparência, a formação de
“panelinhas” e de guetos dirigentes, a ausência de processos sérios de consulta
ao corpo docente e discente se constitui num desrespeito à pluralidade e à
diversidade de saberes.
Fere igualmente esse princípio aquele
tipo de comportamento do “faz de conta”, através do qual a cúpula dirigente de
uma universidade católica finge que consulta, finge que dialoga, finge que leva
a sério as sugestões dos docentes, funcionários e alunos, mas na hora das
decisões age de forma autoritária e dominadora, desprezando por completo a
inteligência das pessoas que “vestem a sua camisa”. É muito comum encontrarmos
universidades católicas que, desprezando por completo o potencial intelectual
de seus professores e estudantes, se deixam guiar por certos “iluminados”,
muitos deles meros burocratas administrativos, sem nenhuma vocação e paixão
pela educação e pelos valores éticos e cristãos.
Além dos elementos anteriores, João
Paulo II coloca como constitutivo da identidade de uma universidade católica, a
necessária e permanente busca do significado das conquistas da ciência e
da técnica na perspectiva da totalidade
da pessoa humana. A investigação científica e o uso da tecnologia, devem obrigatoriamente favorecer a
convivência social, o respeito às culturas e a causa do ser humano (ECE, 7).
Isso quer dizer que as atividades de ensino e de pesquisa numa universidade
católica têm como ponto de convergência a extensão:
contribuir efetivamente para elevar o nível de ação da comunidade local,
nacional e internacional em favor da promoção humana, da justiça, da
fraternidade e da solidariedade. Uma universidade católica, que não se preocupa
em avaliar o grau da sua efetiva colaboração para transformar realidades injustas
existentes nos locais onde se encontra, está na contramão de sua razão de ser e
de existir. Perdeu completamente o rumo e traiu sua identidade.
3. O cuidado com as implicações éticas
O que acabou de ser dito revela que
toda universidade católica precisa cuidar das implicações éticas daquilo que realiza. Precisa dar prioridade à ética sobre a técnica, defendendo
claramente o primado da pessoa sobre as coisas. Toda universidade católica precisa
ser conduzida pelo princípio que une
conhecimento e consciência de que a ciência só ajuda a humanidade se conservar
o sentido de transcendência (ECE, 18).
Transcendência aqui significa a
permanente vigilância para que todas as ações realizadas e todas as decisões
tomadas dentro de uma universidade católica tenham como objetivo algo que está além dela mesma. E o que estaria além
dela mesma? Uma “gestão de serviço” (ECE, 24) que ajude a dar respostas
concretas aos problemas do nosso tempo, “como a dignidade da vida humana, a
promoção da justiça para todos, a qualidade da vida pessoal e familiar, a
proteção da natureza, a procura da paz e da estabilidade política, a repartição
mais equânime das riquezas do mundo e uma nova ordem econômica e política, que
sirva melhor a comunidade humana a nível nacional e internacional” (ECE, 32).
Portanto, a universidade católica não pode ser apenas mais uma instituição de
ensino superior à disposição das elites da sociedade. Ela, segundo o princípio
apenas mencionado, precisa ser um espaço de promoção da solidariedade, da
justiça e do correto desenvolvimento sustentável. E para fazer isso ela precisa
“estudar em profundidade as raízes e as causas dos graves problemas do nosso
tempo” (ECE, 32), ou seja, não pode apenas transmitir conhecimentos, mas ser
instância pensante e que faz pensar, inclusive contrapondo-se, se necessário, a
opinião pública e à corrente mercadológica atualmente predominante na educação
privada.
E por que tudo isso? Porque a
universidade católica existe para ser um espaço de realização da missão primária da Igreja Católica (ECE,
48-49). A universidade confessional católica não existe por existir. Existe
para a evangelização. Se não existir
com essa finalidade perde completamente o seu sentido e passa a ser apenas uma
instituição qualquer. Evangelizar, no seu sentido mais profundo, e de acordo
com a mensagem bíblica – fundamento do cristianismo – é anunciar uma boa
notícia à humanidade, de modo particular aos mais pobres, sofredores e
oprimidos. E o cristianismo genuíno sempre entendeu por “boa notícia” um
anúncio acompanhado de ações concretas que contribuam para a libertação de toda
forma de escravidão e de opressão (Lc 4,18-19). De acordo com este texto do
evangelho de Lucas, há no verbo “evangelizar” uma tríplice ação-função: libertação da opressão, formação da
consciência crítica e resgate da justiça.
A universidade católica, enquanto
espaço evangelizador da Igreja, precisar se preocupar seriamente em fazer
acontecer no seu interior essa tríplice função-ação. Precisa semear
conhecimentos que contribuam para a libertação da humanidade, de modo
particular dos pobres, oprimidos e excluídos. Precisa dinamizar sua atuação de
modo que as pessoas que por ela passem sejam pensantes e críticas e não apenas meros
consumidores de informação. Precisa se organizar de tal maneira que impulsione
e fomente ações concretas em favor da justiça, num mundo marcado por
desigualdades e violência. Por essa razão ela deve se pautar pela fidelidade à
mensagem cristã (ECE,13) e ser uma instituição acadêmica, na qual o
cristianismo esteja presente de um modo vital (ECE, 14) e não apenas como letra
morta nos seus documentos institucionais.
4. Os pobres como referencial ético
O
referencial ético de uma universidade católica é o serviço aos mais pobres,
aos mais excluídos, aos marginalizados. Isso não quer dizer que uma
universidade católica não possa estar aberta para todos. Significa apenas que,
para ser cristã e católica, ela precisa priorizar
o serviço aos pobres. Se numa universidade católica os pobres ficam em segundo
lugar, isso é sinal de que ela já deixou de ser cristã e católica. A opção
preferencial pelos pobres foi tida como referencial de avaliação da
autenticidade do cristianismo desde as suas origens. Poucos anos depois de
Cristo, quando o cristianismo começava a se expandir para além das fronteiras
da Palestina, houve um momento de confronto entre os seus dirigentes para avaliar
se o que estava sendo pregado aos fiéis de outras culturas era genuinamente
cristão. Depois de uma boa discussão chegou-se à conclusão de que o que estava
sendo pregado aos não judeus estava de acordo com a “ortodoxia” cristã. Mas,
para evitar ambiguidades futuras, as lideranças se impuseram um critério decisivo de autenticidade do
cristianismo: que os pobres tenham a prioridade (Gl 2,10; Tg 2,1-8).
Tenho notado, com certa perplexidade,
que um bom número de universidades está se pautando mais pelo que dita o
mercado do que pelas exigências de sua identidade confessional católica. Não
resta dúvida de que a competição no campo da privatização da educação é feroz
e, na maioria das vezes, sem nenhuma preocupação com a ética e com o bem comum.
Porém, as universidades católicas não podem abrir mão dos princípios cristãos, pois
perderiam por completo a sua identidade. Se não cuidarem de certos aspectos
essenciais de sua missão evangelizadora, fazendo o diferencial, serão vistas
pelas pessoas apenas como mais uma instituição que quer ganhar muito dinheiro
com a educação, mesmo quando estiverem operando no vermelho.
Distanciando-se da realidade do povo e
da finalidade evangelizadora, a universidade católica se torna uma instituição
“decapitada” e promove a sua auto-anulação, uma vez que passa a não ser
compreendida pela cultura na qual se encontra inserida. Não é mais um lugar de
busca da transcendência e do sentido da vida, mas somente uma mera concorrente
no mercado educacional, sem mais nenhum diferencial ético e cristão. É preciso,
pois, que as organizações mantenedoras das universidades católicas pensem
seriamente nisso e se deixem interpelar seriamente pelo Evangelho e pelos
sinais dos tempos.
5. Querendo concluir: toda educação é ideológica
Para concluir quero chamar em causa o
grande educador Paulo Freire. Ele nos lembrava na sua Pedagogia do oprimido (São Paulo: Paz e Terra, 2009, 39ª edição)
que toda educação é ideológica (p.
125-134). E para Freire a ideologia é a “ocultação da verdade dos fatos, com o
uso da linguagem para penumbrar ou opacizar a realidade ao mesmo tempo em que
nos torna ‘míopes’” (p. 125). E, entre as formas mais sofisticadas de penumbrar
a realidade e tornar míopes as pessoas, está aquela capacidade que a ideologia
tem de nos amaciar: “nos faz às vezes
mansamente aceitar que a globalização da economia é uma invenção dela mesma ou
de um destino que não poderia se evitar, uma quase entidade metafísica e não um
momento do desenvolvimento econômico submetido, como toda produção econômica capitalista,
a uma certa orientação política ditada pelos interesses dos que detêm o poder”
(p. 126).
Dentro dessa lógica uma universidade
católica pode ser tentada a abandonar por completo a sua identidade e a sua
missão para se auto-amaciar-se, com a desculpa de que não há alternativa dentro
de um mercado altamente competitivo e antiético. Esta é uma lógica perversa e
cruel, pois, como nota Freire, uma das formas mais eficazes da ideologia
fatalista que invade também a educação “é convencer os prejudicados das
economias submetidas de que a realidade é assim mesmo, de que não há nada a
fazer, mas seguir a ordem natural dos fatos” (p. 127). Continuando sua fala
Freire conclui afirmando que a ideologia tem a sua ética, mas “é a ética do
mercado e não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar
bravamente se optamos, na verdade, por um mundo de gente” (p. 127). Quando,
pois, dentro de uma universidade católica falamos de uma “universidade com a
qual sonhamos”, não podemos esquecer essas coisas todas. Lembrando que, salvo
algumas raras exceções, o ambiente universitário é sempre marcado pela presença
de pessoas inteligentes. E essas pessoas inteligentes sabem muito bem perceber
quando “na prática a teoria é outra”. E se isso acontecer, a universidade católica
desvia-se por completo de sua finalidade precípua.
* Filósofo, teólogo, doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de
Roma (Itália), escritor, conferencista, gestor do Centro de Reflexão e Estudos
sobre Ética e Antropologia da Religião (Crear) da Universidade Católica de
Brasília, onde também é professor.
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