sábado, 22 de junho de 2013

Manifestações públicas


Manifestação sem reflexão é alienação

José Lisboa Moreira de Oliveira*

            Há alguns dias o nosso país está sendo palco de numerosas manifestações de pessoas, que tomam as ruas para protestar contra situações consideradas injustas. Tudo parece ter começado em São Paulo numa reação contra o aumento da passagem dos transportes coletivos. Mas aos poucos outros “ingredientes” foram sendo acrescentados ao “cardápio” das reinvindicações: os escandalosos gastos com a Copa do Mundo de futebol, a volta da inflação que atinge de modo todo especial os alimentos, a corrupção política, o descaso com setores fundamentais como a saúde e a educação, e assim por diante.

            A manifestação pública, o protesto, as marchas etc. são expressão de uma democracia participativa e sinal de que estamos acordados e reagindo a situações insuportáveis que causam indignação e perplexidade. Por essa razão essas manifestações são não só legítimas, mas profundamente necessárias para se garantir a efetiva democracia e o exercício da cidadania. Querer impedi-las seria o mesmo que colocar-se contra a prática democrática. O direito à manifestação e à liberdade de opinião não pode ser visto como “surto psicótico” ou “histeria coletiva”. Isso está garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Constituição Federal do Brasil. Portanto, é algo normal e faz parte do jogo democrático.

Porém, isso não significa que a manifestação e o protesto por si próprios sejam suficientes para resolver os problemas de uma nação. Uma manifestação, por mais extensa e expressiva que seja, não revela necessariamente a maturidade democrática de um povo. Dependendo do caso, pode ser sinal de desespero, de crise e até mesmo de violência coletiva. Para que possam revelar-se como sinal de maturidade política os atos públicos precisam ser acompanhados de bastante reflexão e de racionalidade. Do contrário, se esvaziam e não conseguem atingir plenamente seus objetivos. Essa reflexão e essa racionalidade precisam ser cultivadas antes de tudo a nível individual. Mas precisam ser feitas também em vários espaços coletivos de nossa sociedade.

            A reflexão e a racionalidade são necessárias para que se evite o risco gravíssimo de se tentar encontrar “bodes expiatórios”, ou seja, culpados para o que está acontecendo no país. Infelizmente a história e as pesquisas mostram que nesses momentos há uma tendência generalizada das multidões em buscar responsáveis, ou até um responsável pelas situações críticas. E, lamentavelmente, na maioria das vezes, “os bodes expiatórios”, que pagam o preço amargo da fúria das multidões, são pessoas inocentes que nada têm a ver com o que acontece, ou que não são as únicas responsáveis pelos males que afetam um povo ou uma nação.

            O antropólogo francês René Girard tem estudado muito esse tema. No seu livro O bode expiatório (São Paulo: Paulus, 2004) ele analisa alguns aspectos da questão. Girard, antes de tudo chama a nossa atenção para o fato de que esse tipo de manifestação acontece quase sempre em períodos de crise e de enfraquecimento das instituições. A crise e o enfraquecimento das instituições “favorecem a formação de multidões, isto é, de ajuntamentos populares espontâneos, suscetíveis de substituir instituições enfraquecidas ou de exercer pressão decisiva sobre elas” (p. 19). Essa pretensão de querer substituir o papel decisivo das instituições pode levar a uma cegueira desesperada e obstinada que não admite nenhuma outra lógica a não ser a radicalidade exacerbada, terminando por levar a mobilização popular a contradições e a fazer na prática o que tanto repudia. Combate-se a injustiça com a injustiça, a violência com a violência. E isso, como mostram os fatos históricos, não leva a nada.

            Um segundo elemento apontado por Girard é o fato de que nessas mobilizações as pessoas, geralmente, se recusam a avaliar a própria responsabilidade pelo que está acontecendo. Os manifestantes mais do que avaliar a si próprios “têm forçosamente a tendência de reprovar tanto a sociedade em seu conjunto, o que não os compromete com nada, como os outros indivíduos que lhes parecem particularmente nocivos por razões fáceis de desvendar. Os suspeitos são acusados de crimes de um tipo particular” (p. 22).

É importante, por exemplo, que os manifestantes sejam levados a pensar nos pequenos atos cotidianos de corrupção que normalmente praticamos. Seria bom que o estudante que participa da passeata fizesse uma autoanálise de si mesmo, para ver se não costuma, de vez em quando, apresentar um plágio como sendo trabalho de sua autoria. Que o professor manifestante pensasse na sua forma de exercer a docência. Não teria sido alguma vez um ato de corrupção? Que o funcionário público que participa das passeatas pudesse confrontar a sua forma de trabalhar e de atender o cidadão comum. Que os fanáticos torcedores, certamente muitos deles presentes nessas manifestações, pensassem no modo como se comportam nos estádios e no modo como idolatram o futebol. Que os meninos e as meninas de classe média pudessem questionar seus pais sobre o modo como tratam seus funcionários, especialmente aqueles mais simples, aqueles que lavam as latrinas de suas casas chiques. Que o trabalhador comum pudesse analisar o seu modo de se comportar na fila de ônibus, na fila do banco ou na fila do refeitório da empresa onde trabalha. Não estaria ele, algumas vezes e na prática, querendo levar vantagem em tudo? E a lista poderia se multiplicar. Se faltar isso, as manifestações terminam dando em nada. Quando tudo terminar, vamos ver que a vida continua do mesmo jeito, uma vez que a corrupção que levou o político corrupto até o Congresso Nacional está arraigada em cada um e em cada uma de nós. E se não for expurgada a corrupção que mora dentro de cada pessoa, não há como expurgá-la das instituições.

Além da reflexão individual é fundamental que as instituições (famílias, igrejas, escolas, universidades, sindicatos, ONGs etc.) também façam sua reflexão e ajudem a refletir. Não é nenhuma novidade o fato de que a família vem abdicando de sua responsabilidade educativa. As igrejas se transformaram em “supermercados da fé” e na sua grande maioria se limitam a vender “kits de salvação”, recusando-se a pensar e a educar seus fiéis para uma consciência crítica. As escolas, por várias razões, não mais educam. As universidades se transformaram em “supermercados de diplomas” e o sindicatos, quase todos pelegos, se limitam a promover shows, sorteios e bingos no dia do trabalhador. As ONGs, salvo honrosas exceções, se transformaram na forma mais fácil de embolsar o dinheiro público e de garantir boa vida para suas cúpulas.

Esta reflexão coletiva é indispensável, uma vez que a corrupção dos indivíduos é alimentada pela corrupção das instituições. Se, por um lado, os indivíduos corruptos favorecem as instituições corruptas, por outro as instituições corruptas criam estruturas e ambientes que induzem à corrupção individual. E, lamentavelmente, em momentos como esses de mobilizações coletivas a instituição, seja ela qual for, ao invés “de ver no microcosmo individual um reflexo ou uma imitação do nível global, ela procura no indivíduo a origem e a causa de tudo o que a fere. Real ou não, a responsabilidade das vítimas sofre o mesmo engrandecimento fantástico” (GIRARD, p. 30). Não por acaso as mobilizações que estão acontecendo no Brasil tiveram início após uma campanha maciça da grande mídia em favor da redução da maioridade penal.

Sem reflexão e sem racionalidade as manifestações, além do risco de apelar para a violência, acabam em nada e não servem para nada. Podem simplesmente, mesmo que de forma inconsciente, tornarem-se massa de manobra e de manipulação daqueles que não querem que as pessoas pensem e tenham consciência crítica. Além disso, podem penalizar vítimas inocentes e pessoas que não são as únicas responsáveis pelo que está acontecendo. “Os perseguidores acabam sempre por se convencer de que um pequeno número de indivíduos ou até mesmo um só pode tornar-se extremamente nocivo para toda a sociedade, apesar de sua relativa fraqueza [...]. A multidão tende sempre à perseguição, pois as causas naturais daquilo que a perturba, daquilo que a transforma em turba, não pode interessá-la. A multidão, por definição, procura a ação, mas não consegue agir sobre as causas naturais, procura, então, uma causa acessível e que satisfaça seu apetite de violência” (GIRARD, p. 23).

Isso ficou evidente, por exemplo, nas depredação do patrimônio público praticadas por algumas pessoas durante as manifestações. Ficou evidente também na tentativa de alguns de não permitir a presença de partidos políticos nas passeatas, como se fosse possível uma democracia sem partidos e como se todos os partidos fossem iguais. Ficou evidente ainda na manifestação de ira e de agressividade contra alguns políticos que há pouco tempo assumiram o poder executivo. Girard nota com perspicácia que nas manifestações públicas tende-se a punir “o último a chegar” (p. 26-27) como se ele fosse o único responsável por tudo. Com isso esquecem-se os responsáveis que há séculos perpetuam uma situação de injustiça. No caso do Brasil, ao se enfurecer contra os políticos que no momento ocupam funções executivas, a multidão não percebe que somos vítimas de um colonialismo que já dura mais de quinhentos anos. Não se trata de absolver os atuais políticos, mas de nos darmos conta de que há um sistema secular de opressão. E se não quebrarmos essa corrente colonial, não há como resolver o problema.

Portanto, sem reflexão e sem racionalidade as manifestações correm o risco de serem alienadas, uma vez que, passada a euforia do momento, tudo volta a ser como era antes. Precisamos levar as reinvindicações das ruas para o debate na família, nas igrejas, nas escolas, nas universidades, nos mais diversos grupos humanos. Não podemos nos perder na lógica perversa de separar a sociedade brasileira entre bons e maus, uma vez que dentro de cada um e de cada uma de nós mora um anjo e um demônio. O que precisamos é pensar, refletir e falar dessas coisas entre nós para termos condições de identificarmos as verdadeiras causas da corrupção e das injustiças. Se não fizermos isso corremos o risco de criarmos e punirmos inocentes que, tratados como verdadeiros “bodes expiatórios”, pagarão o preço amargo por uma situação da qual não são responsáveis. E, infelizmente, nesses momentos de agitação social a tendência é punir pessoas rotuladas e tidas como anormais pela multidão. Geralmente tais pessoas pertencem a grupos sociais e étnicos estigmatizados ou estereotipados. E “quando um grupo humano tomou o hábito de escolher suas vítimas em certa categoria social, étnica e religiosa, ele tende a lhe atribuir as doenças ou deformações que reforçariam a polarização vitimária, caso elas fossem reais” (GIRARD, p. 27). Que o digam os negros, os indígenas, os homossexuais, os membros das religiões afro-brasileiras e outras categorias de pessoas profundamente discriminadas em nosso país. Inclusive por pessoas que certamente estão participando das manifestações.



* Filósofo, teólogo, escritor, conferencista, gestor do Centro de Reflexão e Estudos sobre Ética e Antropologia da Religião (Crear) da Universidade Católica de Brasília, onde também é professor.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Missão da universidade católica


A identidade e a missão da universidade confessional católica

Prof. Dr. José Lisboa Moreira de Oliveira*

            A universidade é uma instituição surgida na Europa no século XII, por volta do ano 1150, no contexto do Renascimento, por inciativa da Igreja Católica Apostólica Romana. No início chamava-se “Studium generale” (Estudos gerais) e tinha apenas dois cursos: Filosofia e Teologia. Porém, dentro desses cursos, especialmente da Filosofia, estavam incluídas outras ciências como geometria, aritmética, medicina e direito. Porque estes estudos tinham um caráter bastante amplo, a universidade passou a se chamar Universitas magistrorum et scholarium, ou seja, universidade do ensino e do estudo. Com o passar do tempo a designação ficou resumida ao simples termo “universidade”.

Aos poucos os países foram assumindo a responsabilidade da educação e começam a serem criadas universidades públicas. Porém, as universidades católicas nunca deixaram de existir. Atualmente, segundo dados que circulam na internet, existem cerca de 1360 universidades católicas no mundo.

1. Normas para as universidades católicas
Desde o surgimento da universidade até o presente, a Igreja Católica tem procurado emanar normas e orientações para as suas instituições de ensino superior. Durante o Concílio Vaticano II, realizado entre 1962 e 1965, num documento sobre a educação cristã, intitulado Gravissimum educationis (GE), promulgado em 28 de outubro de 1965, os bispos católicos do mundo inteiro propuseram algumas indicações, tendo presente o contexto dos anos 1960, profundamente marcados por várias revoluções, transformações e pela ideologia do progresso. Quando se referiram às escolas católicas os bispos foram incisivos em afirmar que elas deveriam ter três objetivos específicos: contribuir para o desenvolvimento dos “serviços sociais”, oferecer educação aos mais pobres e formar bons professores (GE, 9). Estava fora de cogitação toda e qualquer ideia de uma universidade “fábrica de canudos”, voltada para a formação burguesa de profissionais liberais sem compromisso social.

Quando falaram especificamente das universidades e faculdades católicas, além de ressaltar o significado delas para o diálogo entre fé e razão e para a investigação científica, os bispos católicos pediram que as mesmas contribuíssem para o exercício da cidadania. Deviam preparar pessoas capazes de atuar eticamente na política e na promoção do bem-comum. Por isso, as universidades e faculdades católicas, especialmente nos países mais pobres, deviam facilitar o ingresso no ensino superior dos jovens mais pobres (GE, 10). Essa proposta dos bispos católicos elimina toda e qualquer possibilidade de uma universidade de corte neoliberal, elitista e excludente. Seria uma tremenda contradição.

Depois disso, outros documentos foram publicados. Um deles foi a Constituição Apostólica Ex corde Ecclesiae (Do coração da Igreja), datada de 15 de agosto de 1990 e assinada pelo papa João Paulo II. Tendo presente este documento, pretendo fazer agora algumas considerações sobre a missão da universidade católica. O que vai ser dito logo em seguida é a minha interpretação daquilo que a própria Igreja Católica manifesta nesse documento sobre as suas universidades.

2. Universidade a serviço da verdade
A primeira coisa que o documento Ex corde Ecclesiae (ECE) afirma é que a universidade católica tem a responsabilidade “consagrar-se sem reservas à causa da verdade” (ECE,4). De acordo com o papa, esta “é a sua maneira de servir ao mesmo tempo a dignidade do homem e a causa da Igreja”. Do contexto do parágrafo deduz-se que a verdade aqui significa buscar com inteligência e amor tudo aquilo que pode contribuir para a afirmação da dignidade humana, da liberdade e da justiça. Nesse sentido, pode-se afirmar, sem medo de errar, que se a universidade católica não estiver comprometida com a busca dessa verdade, ela estará traindo a sua própria identidade e missão. Toda decisão, atitude e ação que visem ofuscar a verdade, obscurecer a transparência e camuflar a realidade atentam contra os princípios católicos.

Um segundo princípio constitutivo da identidade e da missão da universidade católica é “o esforço conjunto da inteligência e da fé” para que as pessoas possam “alcançar a medida plena de sua humanidade” (ECE, 5). Isso quer dizer que uma universidade católica não existe para ser um mero “supermercado de diplomas”. Para ser de fato católica, ela precisa ter compromisso com a humanização da humanidade. Uma universidade que se orienta exclusivamente pela política mercadológica e, a partir disso, se programa e se reprograma, sem se preocupar em dar uma contribuição efetiva para a humanização do mundo, já deixou de ser católica. E para contribuir com a humanização ela precisa, antes de tudo, humanizar-se, isto é, desenvolver políticas internas de respeito pelas pessoas que nela trabalham e circulam. Precisa cuidar bem das pessoas, tratá-las com dignidade, valorizando cada ser humano que nela atua e se encontra.

De acordo com o documento papal, um terceiro elemento constitutivo da identidade e da missão de uma universidade católica, decorrente dos anteriores, é o respeito pela pluralidade e pela imensidade dos campos do saber, cuja expressão disso é um fecundo diálogo (ECE, 6). Disso se deduz que toda forma autoritária, dominadora, excludente, burocrática, não participativa e fechada de conduzir uma universidade católica, não manifesta a sua verdadeira identidade. E como isso está relacionado com a busca da verdade, podemos deduzir que a falta de transparência, a formação de “panelinhas” e de guetos dirigentes, a ausência de processos sérios de consulta ao corpo docente e discente se constitui num desrespeito à pluralidade e à diversidade de saberes.

Fere igualmente esse princípio aquele tipo de comportamento do “faz de conta”, através do qual a cúpula dirigente de uma universidade católica finge que consulta, finge que dialoga, finge que leva a sério as sugestões dos docentes, funcionários e alunos, mas na hora das decisões age de forma autoritária e dominadora, desprezando por completo a inteligência das pessoas que “vestem a sua camisa”. É muito comum encontrarmos universidades católicas que, desprezando por completo o potencial intelectual de seus professores e estudantes, se deixam guiar por certos “iluminados”, muitos deles meros burocratas administrativos, sem nenhuma vocação e paixão pela educação e pelos valores éticos e cristãos.

Além dos elementos anteriores, João Paulo II coloca como constitutivo da identidade de uma universidade católica, a necessária e permanente busca do significado das conquistas da ciência e da técnica na perspectiva da totalidade da pessoa humana. A investigação científica e o uso da tecnologia, devem obrigatoriamente favorecer a convivência social, o respeito às culturas e a causa do ser humano (ECE, 7). Isso quer dizer que as atividades de ensino e de pesquisa numa universidade católica têm como ponto de convergência a extensão: contribuir efetivamente para elevar o nível de ação da comunidade local, nacional e internacional em favor da promoção humana, da justiça, da fraternidade e da solidariedade. Uma universidade católica, que não se preocupa em avaliar o grau da sua efetiva colaboração para transformar realidades injustas existentes nos locais onde se encontra, está na contramão de sua razão de ser e de existir. Perdeu completamente o rumo e traiu sua identidade.

3. O cuidado com as implicações éticas
O que acabou de ser dito revela que toda universidade católica precisa cuidar das implicações éticas daquilo que realiza. Precisa dar prioridade à ética sobre a técnica, defendendo claramente o primado da pessoa sobre as coisas. Toda universidade católica precisa ser conduzida pelo princípio que une conhecimento e consciência de que a ciência só ajuda a humanidade se conservar o sentido de transcendência (ECE, 18).

Transcendência aqui significa a permanente vigilância para que todas as ações realizadas e todas as decisões tomadas dentro de uma universidade católica tenham como objetivo algo que está além dela mesma. E o que estaria além dela mesma? Uma “gestão de serviço” (ECE, 24) que ajude a dar respostas concretas aos problemas do nosso tempo, “como a dignidade da vida humana, a promoção da justiça para todos, a qualidade da vida pessoal e familiar, a proteção da natureza, a procura da paz e da estabilidade política, a repartição mais equânime das riquezas do mundo e uma nova ordem econômica e política, que sirva melhor a comunidade humana a nível nacional e internacional” (ECE, 32). Portanto, a universidade católica não pode ser apenas mais uma instituição de ensino superior à disposição das elites da sociedade. Ela, segundo o princípio apenas mencionado, precisa ser um espaço de promoção da solidariedade, da justiça e do correto desenvolvimento sustentável. E para fazer isso ela precisa “estudar em profundidade as raízes e as causas dos graves problemas do nosso tempo” (ECE, 32), ou seja, não pode apenas transmitir conhecimentos, mas ser instância pensante e que faz pensar, inclusive contrapondo-se, se necessário, a opinião pública e à corrente mercadológica atualmente predominante na educação privada.

E por que tudo isso? Porque a universidade católica existe para ser um espaço de realização da missão primária da Igreja Católica (ECE, 48-49). A universidade confessional católica não existe por existir. Existe para a evangelização. Se não existir com essa finalidade perde completamente o seu sentido e passa a ser apenas uma instituição qualquer. Evangelizar, no seu sentido mais profundo, e de acordo com a mensagem bíblica – fundamento do cristianismo – é anunciar uma boa notícia à humanidade, de modo particular aos mais pobres, sofredores e oprimidos. E o cristianismo genuíno sempre entendeu por “boa notícia” um anúncio acompanhado de ações concretas que contribuam para a libertação de toda forma de escravidão e de opressão (Lc 4,18-19). De acordo com este texto do evangelho de Lucas, há no verbo “evangelizar” uma tríplice ação-função: libertação da opressão, formação da consciência crítica e resgate da justiça.

A universidade católica, enquanto espaço evangelizador da Igreja, precisar se preocupar seriamente em fazer acontecer no seu interior essa tríplice função-ação. Precisa semear conhecimentos que contribuam para a libertação da humanidade, de modo particular dos pobres, oprimidos e excluídos. Precisa dinamizar sua atuação de modo que as pessoas que por ela passem sejam pensantes e críticas e não apenas meros consumidores de informação. Precisa se organizar de tal maneira que impulsione e fomente ações concretas em favor da justiça, num mundo marcado por desigualdades e violência. Por essa razão ela deve se pautar pela fidelidade à mensagem cristã (ECE,13) e ser uma instituição acadêmica, na qual o cristianismo esteja presente de um modo vital (ECE, 14) e não apenas como letra morta nos seus documentos institucionais.

4. Os pobres como referencial ético
O referencial ético de uma universidade católica é o serviço aos mais pobres, aos mais excluídos, aos marginalizados. Isso não quer dizer que uma universidade católica não possa estar aberta para todos. Significa apenas que, para ser cristã e católica, ela precisa priorizar o serviço aos pobres. Se numa universidade católica os pobres ficam em segundo lugar, isso é sinal de que ela já deixou de ser cristã e católica. A opção preferencial pelos pobres foi tida como referencial de avaliação da autenticidade do cristianismo desde as suas origens. Poucos anos depois de Cristo, quando o cristianismo começava a se expandir para além das fronteiras da Palestina, houve um momento de confronto entre os seus dirigentes para avaliar se o que estava sendo pregado aos fiéis de outras culturas era genuinamente cristão. Depois de uma boa discussão chegou-se à conclusão de que o que estava sendo pregado aos não judeus estava de acordo com a “ortodoxia” cristã. Mas, para evitar ambiguidades futuras, as lideranças se impuseram um critério decisivo de autenticidade do cristianismo: que os pobres tenham a prioridade (Gl 2,10; Tg 2,1-8).

Tenho notado, com certa perplexidade, que um bom número de universidades está se pautando mais pelo que dita o mercado do que pelas exigências de sua identidade confessional católica. Não resta dúvida de que a competição no campo da privatização da educação é feroz e, na maioria das vezes, sem nenhuma preocupação com a ética e com o bem comum. Porém, as universidades católicas não podem abrir mão dos princípios cristãos, pois perderiam por completo a sua identidade. Se não cuidarem de certos aspectos essenciais de sua missão evangelizadora, fazendo o diferencial, serão vistas pelas pessoas apenas como mais uma instituição que quer ganhar muito dinheiro com a educação, mesmo quando estiverem operando no vermelho.

Distanciando-se da realidade do povo e da finalidade evangelizadora, a universidade católica se torna uma instituição “decapitada” e promove a sua auto-anulação, uma vez que passa a não ser compreendida pela cultura na qual se encontra inserida. Não é mais um lugar de busca da transcendência e do sentido da vida, mas somente uma mera concorrente no mercado educacional, sem mais nenhum diferencial ético e cristão. É preciso, pois, que as organizações mantenedoras das universidades católicas pensem seriamente nisso e se deixem interpelar seriamente pelo Evangelho e pelos sinais dos tempos.

5. Querendo concluir: toda educação é ideológica
Para concluir quero chamar em causa o grande educador Paulo Freire. Ele nos lembrava na sua Pedagogia do oprimido (São Paulo: Paz e Terra, 2009, 39ª edição) que toda educação é ideológica (p. 125-134). E para Freire a ideologia é a “ocultação da verdade dos fatos, com o uso da linguagem para penumbrar ou opacizar a realidade ao mesmo tempo em que nos torna ‘míopes’” (p. 125). E, entre as formas mais sofisticadas de penumbrar a realidade e tornar míopes as pessoas, está aquela capacidade que a ideologia tem de nos amaciar: “nos faz às vezes mansamente aceitar que a globalização da economia é uma invenção dela mesma ou de um destino que não poderia se evitar, uma quase entidade metafísica e não um momento do desenvolvimento econômico submetido, como toda produção econômica capitalista, a uma certa orientação política ditada pelos interesses dos que detêm o poder” (p. 126).

Dentro dessa lógica uma universidade católica pode ser tentada a abandonar por completo a sua identidade e a sua missão para se auto-amaciar-se, com a desculpa de que não há alternativa dentro de um mercado altamente competitivo e antiético. Esta é uma lógica perversa e cruel, pois, como nota Freire, uma das formas mais eficazes da ideologia fatalista que invade também a educação “é convencer os prejudicados das economias submetidas de que a realidade é assim mesmo, de que não há nada a fazer, mas seguir a ordem natural dos fatos” (p. 127). Continuando sua fala Freire conclui afirmando que a ideologia tem a sua ética, mas “é a ética do mercado e não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente se optamos, na verdade, por um mundo de gente” (p. 127). Quando, pois, dentro de uma universidade católica falamos de uma “universidade com a qual sonhamos”, não podemos esquecer essas coisas todas. Lembrando que, salvo algumas raras exceções, o ambiente universitário é sempre marcado pela presença de pessoas inteligentes. E essas pessoas inteligentes sabem muito bem perceber quando “na prática a teoria é outra”. E se isso acontecer, a universidade católica desvia-se por completo de sua finalidade precípua.

* Filósofo, teólogo, doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma (Itália), escritor, conferencista, gestor do Centro de Reflexão e Estudos sobre Ética e Antropologia da Religião (Crear) da Universidade Católica de Brasília, onde também é professor.